SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 issue80Transformations in the Indigenous Health Care: Tensions and Negotiations in a Brazilian Indigenous ContextAfrican Descent Neighborhood in Quito: Identities, Representations and Multi-Territoriality author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Indicators

Related links

  • On index processCited by Google
  • Have no similar articlesSimilars in SciELO
  • On index processSimilars in Google

Share


Universitas Humanística

Print version ISSN 0120-4807

univ.humanist.  no.80 Bogotá July/Dec. 2015

https://doi.org/10.11144/Javeriana.UH80.aplc 

A 'política do lugar': a Comuna afrodescendente Playa de Oro, Esmeraldas - Equador1

La 'política del lugar': la Comuna afrodescendiente Playa de Oro, Esmeraldas - Ecuador

The 'politics of the place': the Playa de Oro Afro Commune, Esmeraldas - Ecuador

Janaina Lobo2
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil3 janaina.lobo@gmail.com

1O presente texto é um artigo de reflexão que aborda alguns resultados da pesquisa de doutorado intitulada: "À margem do Río: a Comuna afrodescendentes de Playa de Oro, Esmeraldas Equador -agenciamentos locais e a política do lugar', realizada entre os anos de 2010 a 2014, com recursos da CAPES - Brasil.
2Bacharel em Ciências Sociais - Universidade Federal do Maranhão (UFMA - Brasil). Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS - Brasil)
3Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS - Brasil)

Recibido: 12 de febrero de 2014 Aceptado: 24 de junio de 2014 Disponible en línea: 15 de marzo de 2015


Cómo citar este artículo

Lobo, J. (2015). A 'política do lugar': a Comuna afrodescendente Playa de Oro, Esmeraldas - Equador. Universitas Humanística, 80, 237-262. http://dx.doi.org/10.11144/Javeriana.UH80.aplc


Resumo

O artigo versa sobre agenciamentos territoriais da Comuna afrodescendente de Playa de Oro, localizada em Esmeraldas, próximo à fronteira colombo-equatoriana. Situada às margens do Rio Santiago, nos limites da Reserva Ecológica Cotacachi-Cayapas, Playa de Oro possui paradigmas emblemáticos de gestão do território, os quais apontam para outros modelos culturais sobre a natureza' e seus usos e resguardos. Através de uma reflexão sobre as "perspectivas do habitar', objetivo uma compreensão dessa ecologia de vida, a qual se ocupa desses decisivos processos de engajamento histórico com a paisagem. Essa proposição busca compreender marcos conceituais operados pelos playadoreños na gestão do território, traduzidos em uma ecologia política de ação. Tais esforços são significativos para depreender os processos realizados pelos playadoreños para inverter a lógica de invibilização dos povos afrodescendentes na América Latina e refrear a usurpação de seus recursos naturais.

Palavras-chaves: Playa de Oro; afroequatorianos; agenciamentos territoriais; política do lugar; territorialidade


Resumen

El artículo versa sobre los agenciamientos territoriales de la Comuna afrodescendiente de Playa de Oro, localizada en Esmeraldas, cerca de la frontera colombo-ecuatoriana. Situada en márgenes del Rio Santiago, en los límites de la Reserva Ecológica Cotacachi-Cayapas, Playa de Oro tiene paradigmas emblemáticos de gestión del territorio, los cuales apuntan hacia otros modelos culturales sobre la "naturaleza' y sus usos y resguardos. Por medio de una reflexión sobre las 'perspectivas del habitar', el objetivo es una comprensión de esa ecología de vida, la cual se ocupa de esos decisivos procesos de compromiso histórico con el paisaje. Esa proposición busca comprender marcos conceptuales operados por los playadoreños en la gestión del territorio, traducidos a una ecología política de acción. Estos esfuerzos son significativos para comprehender los procesos realizados por los playadoreños para invertir la lógica de invisibilización de los pueblos afrodescendientes en América Latina y refrenar la usurpación de sus recursos naturales.

Palabras clave: Playa de Oro; afroecuatorianos; agenciamientos territoriales; política del lugar; territorialidad


Abstract

The article deals with the territorial arrangements of the Playa de Oro Afro Commune, located in Esmeraldas, near the Colombian-Ecuadorian border. Located on the banks of the Rio Santiago, in the limits of the Cotacachi-Cayapas Ecological Reserve, Playa de Oro has emblematic paradigms in land management, which point to other cultural models about 'nature', its uses and reserves. Through a reflection on the "prospects of inhabiting", the goal is understanding the ecology of life, which deals with these crucial processes of historical commitment to the landscape. This proposal seeks to understand the conceptual frameworks operated by the local inhabitants in the land management, translated into a an active political ecology. These efforts are significant to comprehend the processes performed by the Playa de Oro inhabitants to reverse the invisibilization logic of the Afro-descendants in Latin America and restrain the usurpation of their natural resources.

Keywords: Playa de Oro; Afro-Ecuatorians; territorial arrangements; politics of place; territoriality


O artigo versa sobre agenciamentos territoriais levados a cabo pela Comuna4 afrodescendente de Playa de Oro, localizada na Província de Esmeraldas, noroeste do Equador, próximo à fronteira colombo-equa-toriana, voltados para reter o desmatamento nessa região. Situada às margens do Rio Santiago, nos limites da Reserva Ecológica Cotacachi-Cayapas (RECC), Playa de Oro possui paradigmas emblemáticos de gestão do território, os quais apontam para outros modelos culturais sobre a natureza e seus usos e resguardos, com formas de pensar e atuar sobre o entorno que escapam de pressupostos ocidentais.

Através de uma reflexão sobre as 'perspectivas do habitar' dos playadoreños, inspirada nas concepções do antropólogo Tim Ingold, objetivo uma compreensão dessa ecologia de vida, a qual ocupa-se desses decisivos processos de engajamento histórico com a paisagem. Essa proposição busca compreender os marcos conceituais operados pelos playadoreños na gestão do território, traduzidos em uma ecologia política de ação. Tais esforços são significativos para depreender os processos realizados pelos playadoreños para inverter a lógica de uma invibilização dos povos afrodescendentes na América Latina e refrear a usurpação de seus recursos naturais.

A região entre-rios do norte esmeraldeño, onde localiza-se a Comuna Playa de Oro, é alvo de históricos despojos. Atualmente, tais ameaças residem em esquemas exploratórios que suprimem perspectivas locais de salvaguarda do ambiente e circunscrevem os afrodescendentes a uma posição territorial subalterna. O presente artigo, portanto, questiona como os playadoreños viabilizam e acionam eloquentes formas de defesa e manutenção do território ancestral frente às investidas de uma persistente colonialidade. Disso decorre a análise de uma ecologia política local que, além do resguardo do território ancestral, expressa a diferença desde o lugar, tal como preconizado por Arturo Escobar (2010): trata-se de aceder às complexas experiências, históricas e espacialmente enraizadas dos playadoreños e seus sentidos sociocosmo-lógicos, que reverberam outras formas de conhecimento.

Tais formas de defesa e manutenção do território playadoreño, entretanto, não devem ser entendidas, como bem alertou Restrepo (2013), a partir de uma imagem tipificante do 'ecólogo por natureza', forjadas a partir de termos alheios que produzem "um efeito de verdade fundado nos discursos de especialistas, principalmente de biólogos e ecólogos" (2013, p. 2008, tradução nossa), os quais pressupõem uma relação harmoniosa das comunidades negras com a "natureza". Para escapar dessa narrativa ancorada em ícones colonialistas e co-mumente centradas no imaginário de um Chocó Biogeográfico de natureza exuberante, recorrerei à etnografia para compreender que há, em Playa de Oro, uma ecologia política local que escapa de regimes preservacionistas extralocais.

Serão apresentados excertos etnográficos do trabalho de campo desenvolvido entre os anos de 2011 a 2013, cujo objetivo é compreender o conhecimento gerado nas práticas da localidade, a política do lugar, por meio da experiência desses afroequatorianos nos seus agenciamentos cotidianos, os quais são carregados de sentidos e refle-tem as ações ordinárias para a proteção desses territórios negros no Equador.

Primeiramente, farei uma breve descrição da topografia moral5 (Taussig, 1993) dessa região esmeraldeña, como forma de situar os discursos sobre esse território-região. Fazer essa topografia, antes de apresentar os exemplos etnográficos, reside na atenção à especificidade local e ao persuasivo entendimento dos motivos e contextos dos atores, pois a atenção às práticas, histórias e modos possíveis de ação nos auxilia a aceder territórios existenciais pouco evidentes. Ainda, discutirei - na segunda parte desse artigo - as ações levadas a cabo para refrear o desmatamento em Playa de Oro e as fronteiras impostas pelo corpo dos playadoreños para a defesa e manutenção do vivo território ancestral, i alvo de constantes ameaças, muitas das quais vinculadas a transfor- & mações económicas nessa região esmeraldeña.

En las orillas del Pacífico: o lugar

O norte equatoriano, especialmente a região da província de Esmeraldas, é a área com maior concentração de afrodescendentes, ratificada pelo censo de 2001, cujos índices apontavam 39,1% da população autor reconhecida negra6. As cifras, atualizadas no último censo de 2010, f confirmaram que a parte setentrional do país reúne 43,9% de afroes-meraldeños, do total de 534.092 habitantes7.

Durante o trajeto que corta o país, sentido serra-costa, ao longo de pouco mais de trezentos quilómetros, os contrastes não se restringem às mudanças de altitude e, consequentemente, climáticas. Na década de sessenta, o antropólogo americano Norman Whitten Jr. (1997, p. 29) já apontava o necessário estabelecimento de vias comunicacionais que minimizassem as disparidades socioculturais entre serranos e costeños. Embora a estrada que interliga as duas regiões seja satisfatória (erigida no início dos anos 60), os problemas de acesso, hoje, são de outra ordem. No último censo constatou-se que Esmeraldas possui 9,8% da população analfabeta, uma das maiores taxas do país; ainda, a população afroequatoriana (não restrita, portanto, à província de Esmeraldas) é a que mais sofre com o desemprego, 9%, segundo dados da Encuesta Nacional de Empleo, Desempleo y Subempleo, Área urbana y rural, ENEMDU - INEC, de 2006.

Assim, a incongruência de tais índices se aduzem à medida que Esmeraldas se destaca na produção agrícola (especialmente cacau e banana), na pesca e na indústria petroquímica. A cidade, que se localiza às margens do Pacífico, onde desemboca o Río Esmeraldas, possui a mais importante refinaria de petróleo do Equador e o maior porto, atividades cruciais para o desenvolvimento económico do país.

A riqueza do ecossistema esmeraldeño é parte do que o geógrafo Robert West, representante da Escola de Berkeley, em viagem pela Colômbia em meados da década de cinquenta, identificou como "terras baixas do Pacífico" (cuja área corresponde desde a província Darién, no Panamá, abarcando toda a extensão do Pacífico colombiano até Esmeraldas), reconhecidamente povoada por populações afrodescen-dentes. Charvet (2010) complementa que a região integra, atualmen-te, um sistema ecológico, igualmente transnacional, denominado de 'Chocó Biogeográfico', considerado por especialistas um dos territórios mais ricos do planeta (hot spot8), todavia ameaçado.

Para além dessas generalidades, a província de Esmeraldas foi comumente descrita desde seus aspectos biogeográficos, nos quais a ênfase no ambiente físico e no clima inospitaleiro favoreceria o refúgio de negros evadidos. Charvet (2010) destaca as impressões do cronista espanhol Miguel Cabello de Balboa que, em meados do século XVI, descrevia a região costeña como uma "hoya calidísima, húmeda y muy enferma y jamás necesitaba de buenos aires y atormentada de mosquitos, grillos, hormigas y sabandijas [...]" (Charvet, 2010, p. 101). Afora tais fontes coloniais, há uma lacuna na produção historiográfica dessa região, especialmente sobre a "variável étnica" (Novoa, 2001).

Dessa forma, a primazia do ambiente físico, verificável na pluralidade de fontes bibliográficas disponíveis, só reitera que Esmeraldas, especialmente a parte setentrional da província, onde localiza-se Playa de Oro, é considerada como uma zona geoestratégica, seja pelo discurso de sua biodiversidade, seja pelas possibilidades de extração de matérias-primas diversas. Inversamente, as comunidades negras que aí vivem, operam com uma exiguidade (que não relaciona-se, portanto, com a riqueza de todo ecossistema úmido-tropical da região) e com uma 'ecologia política do lugar' que, historicamente, fez frente aos despojos de recursos naturais nessa região.

Para além desse enunciado acerca da diversidade biológica, Esmeraldas figura como uma das províncias mais violentas do Equador. Minda (2012) credita a intensidade da violência a

[...] su cercanía con Colombia, más la poca presencia del Estado, ha convertido a los cantones de Eloy Alfaro y San Lorenzo en una zona de alta conflictividad social y violencia. Según los datos de la policía, en la zona se encontrarían operando grupos del crimen organizado, frentes de la guerrilla de las FARC como el móvil Daniel Aldana del Frente 29 de esta guerrilla y bandas de delincuentes que se dedican al asalto, robo, chantaje - cobro de vacunas - y sicariato. [...] Esto ha dado forma a una economía de lo ilegal, que se articula alrededor del tráfico de combustible, tráfico de estupefacientes y de armas. [...] Los lugares más violentos e inseguros son: San Lorenzo, Limones, Borbón, Maldonado, Selva Alegre y Playa de Oro. (Minda, 2012, p. 16, nossa ênfase)

Embora o antropólogo Pablo Minda considere Playa de Oro como um dos lugares mais inseguros da fronteira norte equatoriana, atribuindo ao crime organizado a ativação desse circuito de terror, acredito que a violência em Playa de Oro está frequentemente relacionada com disputas pela gestão desse espaço, particularmente centradas em contendas pela exploração de recursos naturais.

Contudo, tais informações aqui descritas não têm por objetivo realizar uma fenomenologia do lugar, mas transmitir - ainda que incipientemente - noções sobre essa 'topografia moral', conforme ponderava Taussig (1993), ao tentar descrever essa paisagem que se alçava na Colômbia e que era recrutada pela história para a elaboração de um discurso contundente do "lugar". Creio que os discursos sobre a província de Esmeraldas, com frequência descrita desde sua exuberante natureza, produzem 'efeitos de verdade', conforme nomeação foucaultiana, que não alcançam os aspectos "mais delicados e menos tangíveis" (Taussig, 1993, p. 284) das comunidades negras que ali vivem. Além disso, conforme pontuou Arturo Escobar (2010), para repensar o lugar' do Pacífico colombiano o essencial seria entender "o que acontece quando os humanos entram na cena" (Escobar, 2010, p. 59). Segundo Escobar, essa área é, antes de tudo, um 'território-região' (vocábulo adotado pelo antropólogo, em lugar de outros termos, já citados acima, como Chocó Biogeográfico ou Terras Baixas do Pacífico), categoria recrutada dos ativistas do movimento social desse país.

O reencontro com o lugar' e não apenas com a 'região', aglutinados na noção de território-região, configurou-se como um projeto conceitual (e também político) que traduz-se em uma "estratégia subalterna de localização" (Escobar, 2010, p. 72). Tomar essa localização - ou, nos termos de Escobar, política do lugar - desconstruirá discursos estatísticos ou geobiológicos como pontos de partida. Essa postura converge com o entendimento de uma ecologia política do lugar, a qual é "uma forma emergente de política [pois] se afirma como uma lógica de diferença e possibilidade que constrói sobre a multiplicidade de ações no plano da vida cotidiana" (Escobar, 2010, p. 79), acessível a partir das percepções e narrativas dos meus interlocutores de Playa de Oro.

Outro aspecto desse breve levantamento topográfico é ensaiar, a partir da etnografia, outro discurso que epistemologicamente se afaste das perspectivas adaptacionistas para pensar as relações do ser-no-mundo (Gupta e Ferguson, 2008), superando - portanto - grandes divisões, ao demonstrar que a existência (e permanência) de grupos afrodescendentes na fronteira norte equatoriana não sobrepõe-se, mas estende-se à natureza, ao atuar e habitar esse mundo, o território vivo. Inspirado nas concepções de Ingold (2000), proponho uma compreensão da ecologia da vida, a qual ocupa-se desses processos de engajamento que se desenvolvem no interior da equação 'organismo e ambiente', combinados em uma 'totalidade indivisível', configurando um decisivo engajamento histórico com a paisagem, que tem como consequência um conhecer através da prática.

O desafio é etnografar esse 'conhecimento gerado nas práticas da localidade' (Ingold e Kurttila, 2000), entendendo o 'conhecimento local' como inseparável da atividade do habitar a terra (p. 194). Em termos concretos:

[...] para entender o que significa o conhecimento tradicional para a população local, todavia, temos que entendê-la como consistindo de certos poderes de percepção e ação que envolvem disposições e sensibilidades estabelecidas no decurso de uma vida de prática e formação em um dado ambiente. (Ingold e Kurttila, 2000, p. 194)

Assim, após essa digressão sobre o 'lugar' ou sobre essa topografia moral, oportuna para compreender a diferença cultural que se estende pelo espaço geográfico (Wade, 2000), destaco a compreensão desse mesmo espaço desde outros parâmetros, apontados pelos playadoreños.

O lugar entre-rios: a Comuna de Playa de Oro

La importancia ecológica de esta sub región está determinada por que en ella se encuentran las áreas protegidas más importantes de la provincia de Esmeraldas: la Reserva Ecológica Cotacachi-Cayapas con una superficie de 204.420 has, de las cuales 161.130 corresponden a los cantones Eloy Alfaro y San Lorenzo; la Reserva Forestal Awá, con una extensión de 101.000 de las cuales 28.160 se encuentran en el cantón San Lorenzo y la Reserva Ecológica Manglares Cayapas-Mataje con 51.300 has. (Minda, 2012, p. 09)

A comuna Playa de Oro localiza-se na fronteira norte da província de Esmeraldas, em uma zona rivereña, na Parroquia Luis Vargas Torres, pertencente ao cantón Eloy Alfaro. Charvet (2010) ressalta que Eloy Alfaro está entrecortado por um grande sistema hidrográfico. Ao longo desse imenso conjunto fluvial várias comunidades afro-descendentes constituíram-se secularmente, constituindo o que hoje se conhece como o complexo de Comunas Negras dos rios Santiago, Cayapas e Onzole, principalmente.

A epígrafe dessa secção destaca os aspectos físicos de Playa de Oro, enfatizando a dimensão ecológica da região. A comuna Playa de Oro localiza-se nas bordas da Reserva Ecológica Cotacachi-Cayapas, área protegida pelo Estado equatoriano, por meio de decreto executivo, desde 1968. Disso decorre uma série de ações governamentais orientadas à Playa de Oro. No Plan de Manejo Reserva Ecológica Cotacachi - Cayapas (2007)9, elaborado pelo Ministério del Ambiente del Ecuador está definido:

La Reserva Ecológica Cotacachi-Cayapas (RECC) está localizada en las provincias de Esmeraldas e Imbabura, en el noroccidente del Ecuador. [...] Sin embargo, en las últimas décadas la región occidental ecuatoriana ha perdido gran parte de sus bosques nativos, siendo una de las áreas más deterioradas a nivel mundial (Sierra, 1999; Dodson y Gentry, 1991). La integridad de los ecosistemas de la zona del noroccidente ecuatoriano, y por lo tanto la de los ecosistemas de la RECC, se encuentra principalmente amenazada por la expansión de las empresas madereras, la ampliación de la frontera agrícola y la conversión de bosque natural a plantaciones de palma africana. (Plan de Manejo Reserva Ecológica Cotacachi-Cayapas, 2007, p. 15)

Apesar das inúmeras informações físico-ambientais que dizem respeito à área protegida, com nomeações científicas das espécies da fauna e flora endêmicas, cabe ressaltar que a comuna playadoreña opera desde outros conceitos e parâmetros. Para tanto, are uma analogia a essa 'política do lugar' de Playa de Oro, semelhante ao que Walter Mignolo (1998) nomeou de "enacción". Considerarei que o conhecimento é produzido em todas as esferas sociais, "por lo tanto, no se trata ya de pensar "teorías" que nos ayuden a comprender la "realidad", sino encontrar la teoría "en" la realidad" (p. 01).

No caso de Playa de Oro, há um corpo teórico que versa, sobretudo, em relação à gestão do ambiente e da comunidade. A minha busca por uma inteligibilidade é confrontada por formas de hacer su propia historia, como refere Don David - ancião playadoreño - centrada na possibilidade de agenciar escolhas. Esse pensamento fronteiriço, ainda seguindo Mignolo (1997), refere-se a um potencial de pensamento que surge desde a subalternidade colonial. Os bosques de Playa de Oro, hoje limítrofes à reserva de preservação estatal, são - antes de um discurso macro-estratégico de conservação - entes que dialogam com a sociocosmologia dos playadoreños.

O território do Mulato Bamba.: os reveses do desmatamento

Playa de Oro sempre foi alvo de históricos despojos, muitos vinculados aos grandes ciclos de extração de ouro. Atualmente, o território da comuna vê-se ameaçado pelo garimpo a céu aberto, plantio de palma africana e extração ilegal de madeira, consoante à citação do Plan de Manejo Reserva Ecológica Cotacachi - Cayapas. Para pontuar essa política do lugar, farei referência às investidas para o desmatamento dos bosques de Playa de Oro.

A exploração de madeira é uma atividade que Minda (2002) denominou como um desencadeador por excelência de conflitos na parte setentrional da província de Esmeraldas. Ratificando essa assertiva,

Potter M. (2011) aponta que a "tasa de deforestación de Ecuador ocupa el noveno puesto en la escala de FAO como una de las más altas del mundo y la más alta de América del Sur" (p. 48). O fenómeno, porém possui várias 'frentes de atuação'. No caso de Playa de Oro, a principal intimidação é o desmatamento causado pelo corte comercial de madeira. O território da Comuna, às bordas de uma área de proteção ambiental, a RECC, é alvo frequente de despojos de madeira, ainda que os playadoreños invistam no resguardo dos seus bosques primários.

Tais despojos de madeira na região esmeraldeña, conforme discute Minda (2006), ademais da 'persistente colonialidade', tiveram um impulso na década de setenta, cuando se sientan las bases para llevar adelante un proceso de explotación expansivo, pero también intensivo del bosque (Minda, 2006, p. 109). Após esse período, houve um novo incremento no desmatamento dessa região entre os anos de 1983 -1993, ocasião em que "la tala se adentro hacia las partes altas de los ríos Onzole, Cayapas, Santiago" (Minda, 2006, p. 113). Posteriormente, Minda ainda considera que a década de noventa foi um período dramático no Norte de Esmeraldas, relativo ao corte de madeira das florestas. Essa última etapa coincide com os relatos de Don David referente ao recrudescimento do assédio sobre o bosque primário de Playa de Oro e a pouca autonomia dos playadoreños ante as decisões do Cabildo da Comuna Santiago-Cayapas, ao qual estavam, inicialmente, subordinados:

Cambia que con la comuna Río Santiago toda las cosas llegaban a la mano del cabildo de allá y ellos se llevaban todo de acá a nosotros no nos daban nada. Así han hecho con los otros pueblos vecinos de la misma comuna Río Santiago. Ahí nomás está el pueblo de Guayabal. Guayabal pertenece a la comuna Río Santiago. Pero ¿qué pasa?, entran las compañías madereras, o las mineras, el impuesto todo que cobran queda en el cabildo, y los que andan y están peleando sus tierras no ganan nada. En cambio, aquí no es así, aquí la tierra es de todos, y si hay 10 dólares, de los 10 dólares tenemos que beneficiarnos todos, de cualquier manera tenemos que beneficiarnos todos. [...] Si uno quiere hacerlo aquí todo el resto le reclamamos "qué pasa, esto es de todos". Las tierras son de todos, desde el que recién nació hasta el más anciano. (David Arroyo, comunicacão pessoal, outubro de 2012)

O discurso de Don David é marcado pela proclamada defesa para a manutenção e proteção do território, entendido como 'de todos'. A sublevação de Playa de Oro para independentizar-se da Comuna Santiago-Cayapas, há dezesseis anos, foi motivada, portanto, pela necessidade de maior autonomia. Clemente Arroyo, atual cabildo de Playa de Oro, instância político-organizativa da comuna, explica que:

Es cierto que en ese entonces sí había conflicto con la comuna de Santiago-Cayapas, porque el objetivo de la comuna de Santiago-Cayapas era y es la madera. Ellos se dedicaron a explotar madera. Entonces como sabían que Playa de Oro tenía mucha madera, querían involucrarlo a Playa de Oro para que estuviera inmerso en la comuna Río Santiago-Cayapas. Entonces eso fue una lucha bien grande que nos duró aproximadamente cinco años, para independizarnos de la comuna Río Santiago-Cayapas. (Clemente Arroyo, comunicação pessoal, outubro de 2012)

A exploração ilegal e massiva de madeira, a despeito dos desígnios dos playadoreños, fundamentou a separação da Comuna Santiago-Cayapas. A narrativa de Clemente é reforçada por Don David: urgia, para Playa de Oro, a necessidade de tornar-se uma Comuna autónoma, para não subjugar-se às decisões alheias de um Cabildo não -playadoreño. Trata-se, segundo Don David, do fundamento de hacer su propia historia. De fato, creio que a ação transformadora que resultou na separação de Playa de Oro da Comuna Santiago-Cayapas originou benefícios que reverberam na atual organização do território:

Han habido muchísimos cambios, porque nosotros mismos gestionamos para nosotros. El primer cambio es que conservamos nuestras tierras. Si fuéramos estado en la comuna Rio Santiago Cayapas ya no tendríamos tierra. Porque si tú ves esa zona con palmeras, minería, madereras.,. Primero fue la maderera, arrasaron con todo, nosotros no. Segundo cambio, es que nosotros como organización, como autoridad, como explicaba lo el presidente, le solucionamos la situación al comunero. Lo que sí, nos sentimos orgullosos por tener nuestra comuna, por tener nuestras tierras. Por ejemplo ahorita estamos en el programa de Sociobosque, que algunas comunidades lo necesitan. Mira, lo peor de la comuna Río Santiago-Cayapas es que el cabildo es el que manda de las comunidades. Porque, por ejemplo, el cabildo está asentado en Borbón y manda una compañía maderera a, por ejemplo, a Angostura, a una comunidad que está dentro de ahí, y ellos no saben. Y sacan la madera y la madera no es para la comunidad, sino que quien gana es el cabildo. Entonces acá no se dan esas cosas, y pienso que nunca se irán a dar. Acá cuando se va hacer algo, antes de tomar la decisión el cabildo, se llama al pueblo. O sea, que el pueblo es que autoriza. (Manoel Ayoví, comunicação pessoal, outubro de 2012).

É com esse discurso que Manoel Ayoví, uma das lideranças da Comuna Playa de Oro, explicita as idiossincrasias que argumentaram a favor da independência da Comuna, além de reiteradamente expor os desacordos referentes à gestão do território. Trata-se, como propugnou Escobar (1999), da persistência da prática da diferença, convertida em atos políticos. O discurso sobre o controle do território de Playa de Oro e da autonomia nas decisões, sempre destacando a dimensão coletiva, conjuga os desígnios da comunidade. Trata-se de decisões coletivas, ainda que não consensuais, que arbitram sobre a administração segundo suas próprias avaliações. Quando Clemente, atual cabildo, dizia-me: "precisávamos de alguém que fosse da Comuna, nascido aqui, nesta terra, comunero, para dirigir nossos interesses e evitar que nosso pueblo corresse riscos", tal sentença combina-se com um conjunto de práticas, ações diferenciadoras, que versam sobre os padrões locais de gestão.

Tais padrões de gestão reiteram que são as decisões coletivas dos playadoreños que norteiam os regimes de uso dos recursos naturais. Dessa forma, foi a necessidade de gerir o autonomamente o espaço da comuna, a partir de critérios locais e não exógenos, que Playa de Oro funda uma comuna própria, desvinculada da anterior, a Santiago-Cayapas. Além disso, quando afirmam que o dirigente máximo - o cabildo - deve ser um playadoreño, 'nascido e criado', indicam que somente nessa condição o eleito será capaz de gerir adequadamente, desde os parâmetros locais, os usos e resguardos para a manutenção desse lugar.

Tais parâmetros locais também demonstram que os flagelos do desmatamento, sentidos na comuna, não são apenas quantificáveis pelos altos índices apontados pelos órgãos de controle. A concepção local sobre a conservação do ambiente vai além de um discurso pre-servacionista que acentua as florestas do Equador, especialmente as localizadas em Esmeraldas, a 'província verde', como grandes reservas de armazenamento de carbono. Don David, quando se refere ao bosque playadoreño, alerta que é desse meio, por excelência, que os animais, ou melhor, todos los seres vivientes, incluindo os humanos, usufruem das condições necessárias para viver. Qualquer desequilíbrio no bosque, inevitavelmente, afetará o fluxo do todo:

[el bosque] es protección para nosotros. Porque en el bosque donde hay reproducción de los animales, en una parte donde no hay bosque no reproducen los animales, ¿cómo?, ¿de adonde? Todos los animales corren donde hay bosque. Porque ¿de adonde se alimentan?, ¿cómo se alimentan? si usted un día salió. entro por este camino encontró un animal "pum" lo mató, mañana de vuelta, acabó con todos, entonces ya no hay producción. [...]. Entonces el bosque es muy importante para la producción de todo ser viviente, la flora, la fauna y todos estos espíritus [...]. (David Arroyo, comunicação pessoal, outubro de 2012)

O desmatamento, por conseguinte, provoca uma ruptura nessa grande cadeia de organismos-mundo e promove um dos grandes conflitos apresentados à Comuna. Trata-se da invasão do território de Playa de Oro para o corte ilegal de madeira. Ainda que o discurso governamental sobre a deflorestación seja justificado sob a perspectiva da pobreza, a qual motivaria as populações para o corte e a venda de madeira, o caso de Playa de Oro é emblemático para subverter essa grande narrativa. Não se trata da exploração de madeira exercida pelos comuneros, mas por terceiros, motivados por interesses empresariais, que invadem as terras comunais, desafiando os limites e a autonomia sobre o 'espaço habitado' dos playadoreños.

As terras de Playa de Oro, diz Don David, bem como seus bosques, sempre foram concebidas sob uma perspectiva ecológica que entende todos os seres como constituintes e imprescindíveis de um

só mundo. Há, assim, o entendimento de uma concatenação de partes integradas e complementares, em um constante fluxo de relações interdependentes. Dito de outra forma, a floresta não é um ente separado do homem, não se pressupõe uma exterioridade a essa associação, mas um vínculo - metonimicamente sugerido como a vida. É a vida, inexorável a todos os seres viventes, que sustenta esses fluxos. A ruptura dessa vida, como o corte ilegal da madeira, provocará uma desconformidade irreversível em todo os organismos-mundo de Playa de Oro.

Essa epistemologia local do estar-no-mundo assevera que é na figura do Mulato Bamba, o rei dos animais, que é enunciada a experiência desses vínculos dos organismos-mundo. Conta-me Don David que o Mulato Bamba é uma criatura que vive no bosque, refugiado. Tal criatura não poderia acercar-se dos humanos, pois se trata de uma figura de otra naturaleza, invisível, embora aqueles que sabem sua oração são capazes de vê-lo. É na floresta, então, que o Mulato Bamba encontra proteção e assim rege o equilíbrio desses fluxos. Os caçadores, que matam vários animais, além do que são capazes de consumir, são duramente castigados pelo Mulato Bamba, porque impedem o desenvolvimento de outros animais ao romper as cadeias ecológicas:

Mulato Bamba... que es el rey de los animales. Nos contaba un señor, un pariente mío, que se llamaba Gregorio Medina del Onzole, y él con el hermano siempre salían a cacería y mataban ocho, diez, doce, hasta quince, era demasiado. Y una vez, me contaba, que en las bandas de allá del Onzole, él ya había matado seis y el hermano había matado cuatro, eran diez y ellos querían seguir matando. Y cuando lo vieron a un hombre que jalaba unas [...] y hacia unos lazos para cogerlos a ellos, y que dijo "¡maten lo que van a ocupar, no maten lo que no van a ocupar, ni tampoco me hieran mis animales que son míos!". Casi los mata. Salieron... Ellos salieron de corrida, donde que ellos ya cuando iban a cacería, "pum", "pum", cada uno mataba sus dos, ya no seguían más. Porque ese el Mulato Bamba, según me contó el, cuando una tatabra, llegaba herido, ahí es que se ponía bravo. Porque ya lo mandaban herido tenía que curar ese animal. Y él llega a la banda de un carrá, hay un árbol que se llama carrá, y ahí es que lo golpea y "prrum", "prrum", le patea la bamba de palo y ahí él lo recoge. Ahí lo recoge él, y ahí los cuenta. Él sabe contar. no sabe contar como contamos nosotros. (David Arroyo, comunicação pessoal, outubro de 2012)

O Mulato Bamba, pondera Don David, não proíbe a atividade de caça, mas alerta que o bosque e os animais que aí vivem devem ser resguardados. Assim, o consumo de tais recursos deve ser limitado pelo fator subsistência, rechaçando-se a exploração massiva, que excede esse princípio. As árvores do bosque, dessa forma, são como fortes que protegem os animais. Nesse sentido, a observação que faço sobre o Mulato Bamba é muito semelhante à analogia que Ingold (2012) realiza sobre os dragões ou Pássaros-Trovão. O Mulato Bamba não poderia facilmente ser cartografado, ou ainda, categorizado, caso optássemos pelos cânones da ciência moderna. Mas essa criatura não pode ser desconsiderada, porque no quadro normativo da ecologia de Playa de Oro é a atuação do Mulato Bamba que regula, modera e controla a exploração dos recursos da floresta, como a madeira. Antes de dispositivos juridicamente firmados ou do acompanhamento de instituições responsáveis pelo monitoramento do manejo de bosques, é a presença do Mulato Bamba que é sentida, pois orienta os playa-doreños na gestão das florestas e, portanto, no equilíbrio dos organismos-mundo.

Pergunto a Don David, então, se o Mulato Bamba não poderia ajudá-los na conservação da floresta ao impedir a entrada de forasteiros que intencionam espoliar madeira, a morada dos animais. Mas meu interlocutor é categórico ao afirmar que a luta é de todos e que o Mulato Bamba apenas ensina aos playadoreños que hay que tener y hay que ocupar lo que usted necesita, lo que no necesita, no, no puede ocupar lo que no necesita, pois a responsabilidade de gerir o espaço habitado é de todos os organismos-mundo. Diante disso, Don David expõe que não há uma exterioridade, mas uma 'sinergia' que inclui esforços dos playadoreños e das criaturas que, antes de serem 'entidades discretas, são linhas de transformação' (Ingold, 2012, p. 25).

Projeto Socio Bosque e o reconhecimento do território

Um dos esforços dos playadoreños para a contenção dessa economia do terror que é a espoliação da madeira dos bosques primários culminou com uma Assembleia Geral da comuna, em 2011, a qual deliberou pela assinatura do convênio entre Playa de Oro e o projeto Socio Bosque, programa do Ministerio del Ambiente do Equador (MAE) que visa proteger as florestas, páramos e a vegetação nativa e reduzir as taxas de desmatamento da região pela metade10, meta prevista no Plan Nacional de Desarrollo do governo equatoriano. O programa, através de incentivos económicos, objetiva reverter esse quadro de deflores-tación, especialmente em áreas com altos índices de desmatamento e com altos níveis de pobreza, como a Província de Esmeraldas.

O benefício do Socio Bosque cedido à Playa de Oro só foi possível porque o projeto prioriza - ademais dos critérios já apontados - comunas legalmente constituídas, que sejam proprietárias de florestas nativas. Além disso, no caso playadoreño, foi crucial o propósito do governo de proteger áreas que colidam com uma das principais reservas verdes do país, que é o caso da RECC, a qual se limita com Playa de Oro.

De fato, conforme ponderam os dirigentes da comuna11, Clemente e Manoel, as ações para proteger as florestas primárias de Playa de Oro iniciam com os ancestrais, os quais ensinaram padrões de manejo ancorados na premissa do Mulato Bamba: ocupar apenas o necessário, uma forma de manter a simetria entre organismos-mundo, gerando um conhecimento local ancorado no engajamento perceptivo no ambiente, no lugar'. O ingresso no projeto Socio Bosque, portanto, foi uma consequência dessas ações precedentes que orientaram, ancestralmente, a gestão local dos recursos e dos bosques primários em Playa de Oro e no entorno, beneficiando, por extensão, a área onde hoje encontra-se a RECC; e não o contrário. As ações do governo são decorrentes dessa prática local de proteção do território vivo.

Em 2011, participei de uma reunião, realizada na Casa Comunal de Playa de Oro, juntamente com a Fundación Altrópico, responsável por coordenar os programas do MAE, que tinha como pauta a discussão do Plan de Inversión - Comuna Playa de Oro, relativo a setembro de 2011 a setembro de 2012, o qual definiria a destinação dos recursos recebidos do Projeto Socio Bosque. O MAE cedeu à Playa de Oro um montante anual que totalizava $55.244,50, relativo ao total de hectares protegidos. Tal plano de despesas foi elaborado pelos próprios beneficiários do projeto Socio Bosque e indicou como os recursos serão empregados. Durante a reunião, portanto, as aplicações dos recursos foram as descritas no quadro abaixo:

O quadro aponta as demandas de Playa de Oro para a gestão dos recursos recebidos. Parte dessa quantia, indicado no número 1 da tabela acima, é para a limpeza dos limites da Comuna e para a contratação de um guarda-bosque. A reunião, embora também deliberasse sobre as outras rubricas, restringiu-se ao intenso debate que se ergueu sobre a necessidade de investimentos para evitar a exploração da madeira. Em princípio, o que as mulheres e homens defendiam na assembleia era a prevalência da sinalização das fronteiras da Comuna Playa de Oro. Diziam que teriam que deixar muito claro onde começa Playa de Oro, pois as divisas (senderos) estavam sujas e não havia uma marcação nítida dos limites da Comuna. A preocupação com a manutenção dos sinais fronteiriços visava evitar que madeireiros adentrassem o território: tratava-se da imposição de barreiras físicas com vistas a conter as investidas de tais agentes.

Os debates, então, concentravam-se na dimensão de salvaguarda do território. O guarda-bosque, requerido pela Comuna, justifica-va-se na medida em que Playa de Oro possui apenas um vigilante da floresta, mas vinculado à Reserva Ecológica Cotacachi-Cayapas, o que é insuficiente para fiscalizar os mais de 10.000ha pertencentes à Comuna. A deliberação nessa noite de Assembleia Comunal residiu na contratação de mais um guarda-bosque, um playadoreño, que atuaria como o guardião das florestas. Porém, a inquietação dos que estavam reunidos ia além. Tratava-se da concessão quanto ao uso de armas de fogo. Alguém exclamou que, caso o vigilante fosse colocado na selva, sem o porte de nenhuma arma que o protegesse, estaria fadado ao extermínio. Oye, eses hombres son malísimos, como haremos, pues?

Os mediadores da Fundación Altrópico abordavam a questão de outra forma. A responsabilidade do guarda-bosque, portanto, seria apenas observar, mas não agir. Caso o vigia notasse alguma movimentação obscura na floresta, deveria imediatamente comunicar aos responsáveis pela Comuna, para que providências legais fossem tomadas. Simultaneamente ao trabalho de vigilância da floresta, a Comuna haveria de providenciar a limpeza das fronteiras. Mais que limpar, os playadoreños também requisitavam a instalação de uma placa que contivesse a indicação ÁREA DE CONSERVACIÓN - PLAYA DE ORO.

A sinalização, conforme sugeriram, era para alertar que ali não se explora madeira, logo, que a Comuna não é conivente com a ati-vidade de extração massiva, tal como praticada em outras comunas afrodescendentes dessa região. Ou seja, eles objetivavam demarcar o território: na reunião, porém, admitiam que a placa não interditaria as fronteiras, mas apenas alarmaria a condição de ilicitude do corte de madeira nessa área. Assim, enquanto discutiam a posição da placa, que seria colocada nos pontos mais 'críticos', especialmente no limite próximo aos chachi, nacionalidade indígena situada a noroeste da comuna, já se organizavam para percorrer tais fronteiras, los senderos, e avaliar possíveis espoliações.

A necessidade de percorrer a totalidade da área da Comuna, para além de fazer a limpeza nos senderos, residia na importância de ocupar e reconhecer o território de Playa de Oro. A discussão dos comuneros, portanto, versava sobre a imprescindibilidade de mapear a região, conhecer o bosque e, assim, constatar quando algo não estivesse em conformidade. Durante a assembleia, reforçavam que percorreriam toda a extensão do território, cuja empreitada levaria dias, pois retornariam ao centro do pueblo ao final de cada jornada.

O ato de percorrer o território, tal como os playadoreños sugeriam, refere-se à atenção e à diligência com o espaço habitado, além de promover o engajamento do próprio corpo na tarefa do reconhecimento territorial, estabelecendo canais comunicativos com o mundo. Tal perspectiva associa-se ao que Ingold propugna:

[a perspectiva do habitar] situa o sujeito que percebe, desde o início, em um engajamento ativo com o ambiente, de modo que a percepção é uma conquista não apenas da mente, trabalhando sobre o registro do sentido, mas de todo o corpo da pessoa, como um centro de ação indiviso e consciente - na prática de habitar o mundo. Forma e significado, nesta perspectiva, não são impostos pela mente sobre o mundo, mas surgem nos contextos situacionais de ativida-des humanas de habitar. [...] O corpo está ativo, é intencional muito mais que instrumental, não é apenas usado pelo sujeito cultural, mas sim constitui a presença do sujeito como um ser-no-mundo. (Ingold, 1994, p. 332)

Esse deslocamento sobre o território, ou melhor, na paisagem -nos termos de Ingold, reforça o engajamento do ser-no-mundo. A salvaguarda dos bosques, assim, implica no corpo ativo, na educação da atenção - ou na educação perceptual - para o ambiente. Com uma perspectiva semelhante à de Ingold, Nancy Munn (2007), em sua pesquisa entre os aborígenes australianos, corrobora a proposição de um espaço corporificado ao discutir que o indivíduo 'faz' o espaço ao mo-ver-se sobre ele, pois o espaço também está contido nas práticas corporais, na medida em que o corpo estabelece fronteiras. É a partir desse entendimento de um corpo engajado, local por excelência para a materialização de uma experiência, que Munn (2007, p. 95) discorre sobre as fronteiras, a partir da noção de 'corpo perceptivo', que é o 'centro' referencial no qual marcos são instituídos:

As fronteiras são aqui entendidas a partir de seus sentidos práticos, como o movimento do corpo. Pessoas-em-ação não somente produzem fronteiras e experiências fronteiriças, mas parafraseando uma idéia de Simmel, elas próprias são fronteiras. (Munn, 2007, p. 95)

São os corpos-em-ação que viabilizam a salvaguarda dos bosques. O requerido durante a Assembleia, que era a sinalização por meio das placas, conformava um idioma proibitivo; mas tal proibição só se efetivaria com o deslocamento dos corpos sobre o território de Playa de Oro. O interdito para a extração massiva de madeira é anunciado desde a ação (e demarcação) desses corpos sobre a paisagem. Os próprios playadoreños são fronteiras e fazem frente à intimidação dos madeireiros.

Durante a reunião com a Fundación Altrópico, ficou evidente que a proposta dos comuneros é, em lugar de uma exploração massiva da madeira, gerir o espaço habitado nos termos do Mulato Bamba, qual seja, 'ocupar apenas o que se necessita' e resguardar o lugar a partir de decisões locais. Don Romer, construtor naval da Comuna, quando escavava um tronco de árvore para transformá-lo em barco, dizia-me que a madeira deve ser usada com parcimónia, apenas quando necessário, pois tal matéria-prima e, por conseguinte, os bosques de onde provém, são a morada dos bichos - essenciais na cadeia ecológica de Playa de Oro. Disso decorre a emergência do pensamento enunciado por Don David, que versa sobre a preocupação com o futuro dos comuneros: tal narrativa ocupa-se de pensar essa gestão ambiental não apenas no presente, mas para o futuro, resultado da preocupação de hacer su propia historia:

A nosotros no nos ha gustado explotar la madera, a nosotros no nos ha gustado explotar las minas, [...] aquí abajo en el estero de Cogería, ellos mantienen unas pocas hectáreas que trabajaban con una compañía minera, pero ya no, ya no queremos trabajar más, ya no queremos dañar más las tierras. Porque dañamos nosotros las tierras ¿y la nueva generación? Más pobres que nosotros, ¿y a dónde van a pararse? Entonces hay que de todas maneras hay que conservar para la [...] juventud, para los nietos y los nietos. A mí no me ha gustado, yo soy uno de los primeros refractarios, que a mí no me ha gustado ni la compañía maderera, ni la minera, a mí no me ha gustado, a mí me ha gustado la conservación. Ahora ya la gente nos dedicamos a la siembra de cacao, que eso también nos trae bienestar hasta para ahora. y también para la juventud. (David Arroyo, comunicação pessoal, outubro de 2012)

Considerações finais

O lugar, ou melhor, o território-região de Playa de Oro, situase em uma zona que sempre foi alvo de perfunctórias descrições, as quais produziram efeitos de verdade. Tais descrições, com frequência baseadas em aspectos físicos e facilmente tangenciáveis, não contemplavam os procedimentos agentivos dos próprios playadoreños para a manutenção e contenção de despojos de recursos naturais em seu território. Entre tais ações locais, como a imposição do próprio corpo na demarcação de fronteiras, coaduna-se a outras medidas para a salvaguarda desse lugar. Além disso, o que os playadoreños reivindicam é, nas palavras de Don David, hacer su propia historia, o que incide sobre a perspectiva de gestão autónoma do território, e expressa - sobremaneira - o respeito aos parâmetros locais para uso e resguardo, ancorados em ensinamentos de diversos entes que compõem o organismo-mundo de Playa de Oro, como o Mulato Bamba.

A criação da RECC, em 1968 e os mais atuais investimentos governamentais, como o Projeto Socio Bosque, não são os desencadea-dores da proteção para a integridade do ecossistema dessa zona, no qual está incluído o território de Playa de Oro. A comuna, que veementemente rechaça a exploração massiva de madeira, resguarda ances-tralmente essa região. Os agenciamentos dos playadoreños tiveram como ponto de partida o espaço habitado, cujo conhecimento gerado deu-se em contato direto com o ambiente: trata-se da política do lugar que presume a imbricação da vida no ambiente.

Além disso, esse território vivo de que tratam os playadoreños, e do qual cuidam a partir de preceitos como os apregoados pelo Mulato Bamba, escapa das definições preservacionistas impostas pelo Estado. As medidas de contenção dos despojos e dos assédios, obviamente respaldadas por programas governamentais, são - antes de um amparo aos resguardos territoriais institucionalizados - ações que reverberam um engajamento no mundo e expõem uma ecologia política local que está além de um modelo determinado, mas que é acima de tudo apropriado por uma gramática local que visa a manutenção desse território vivo. Porque Playa de Oro é, antes de tudo, um território de vida.


Referências

Charvet, E. S. (2010). Feminidad y Masculinidad en la cultura afroecuatoriana. El caso del norte de Esmeraldas. Quito: FIG-ABYA YALA.         [ Links ]

Escobar, A. (1999). El final del Selvaje: naturaleza, cultura y política en la antropología contemporánea. Santafé de Bogotá: CEREC.         [ Links ]

Escobar, A. (2010). Territorios de diferencia: lugar, movimientos, vida, redes. Colombia: Envíon Editores.         [ Links ]

Gupta, A. e Ferguson, J. (2008). Más allá de la 'Cultura': espacio, identidad y las políticas de la diferencia. Antípoda, 07, 233-256.         [ Links ]

Ingold, T. (1994). Companion encyclopedia of anthropology: humanity, culture and social life. London and New York: Routledge.         [ Links ]

Ingold, T. (2000). The perception of the environment: essays in livelihood. London: Routledge.         [ Links ]

Ingold, T. (2012). Caminhando com dragões: em direção ao lado selvagem. Em C. Steil e I. Carvalho (Eds.) Cultura, percepção e ambiente. Diálogos com Tim Ingold (pp.15-29). São Paulo: Ed. Terceiro Nome.         [ Links ]

Ingold, T. e Kurttila, T. (2000). Perceiving the Environment in Finish Lapland, Body & Society, 6(3-4), 183-196.         [ Links ]

Mignolo, W. (1997). La revolución teórica del zapatismo: sus consecuencias históricas, éticas y políticas, Orbis Tertius, IV(5), 1-12.         [ Links ]

Minda, P. (2002). Identidad y conflicto. La lucha por la tierra en la zona norte de la provincia de Esmeraldas. Quito: Ediciones Abya Yala.         [ Links ]

Minda, P. (2006). La deforestación en el norte de Esmeraldas (Eloy Alfaro y San Lorenzo). Esmeraldas,Ecuador: Proyecto de Desarrollo Rural de la Provincia de Esmeraldas.         [ Links ]

Minda, P. (2012). La Deforestación en el norte de Esmeraldas: los actores y sus prácticas. Dissertação apresentada à Universidad Politécnica Salesiana. Quito.         [ Links ]

Munn, N. (2007). Excluded spaces: the Figure in the Australian Aboriginal Landscape. Em S. M. Low e D. Lawrence-Zuñiga (Eds.). The Anthropology of space and place (pp.92-109). United Kingdom: Blackwell Publishing.         [ Links ]

Novoa, R. (2001). Zambaje y autonomía: historia de la gente negra de la provincia de Esmeraldas siglos XVI-XVIII. Quito, Ecuador: Ediciones Abya Ayala.         [ Links ]

Potter M. L. (2011). La industria del aceite de palma en Ecuador: ¿un buen negocio para los pequeños agricultores?. Eutopía, (2), 39-54.         [ Links ]

Restrepo, E. (2013). Etnización de la negridad: la invención de las 'comunidades negras' como grupo étnico en Colombia. Popayán, Colombia: Editorial Universidad del Cauca.         [ Links ]

Taussig, M. (1993). Xamanismo, Colonialismo e o Homem Selvagem: um estudo sobre o terror e a cura. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra.         [ Links ]

Viveiros de Castro, E. (1992). O campo na selva visto da praia. Estudos Históricos, 5(10),170-190.         [ Links ]

Whitten Jr. E. (1992). Pioneros Negros: la cultura afroamericana del Ecuador y de Colombia. Quito: Centro Cultural Afroecuatoriano.         [ Links ]

Whitten Jr. E. (1997). Los negros de San Lorenzo: clase, parentesco y poder en un pueblo ecuatoriano. Quito: Centro Cultural Afroecuatoriano.         [ Links ]

Wade, P. (2000). Raza y etnicidad en latinoamerica. Quito: Abya Ayala.         [ Links ]

Wade, P. (1997). Gente negra, nación mestiza. Dinámicas de las identidades raciales en Colombia. Bogotá: Ediciones Uniandes.         [ Links ]