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Literatura: Teoría, Historia, Crítica

Print version ISSN 0123-5931

Lit. teor. hist. crit. vol.21 no.2 Bogotá Jul./Dec. 2019

https://doi.org/10.15446/lthc.v21n2.78664 

Artículos

Literatura colonial como espaço de disjunção: a historiografia literária brasileira no contexto latino-americano

Literatura colonial como espacio de disyunción: la historiografía literaria brasileña en el contexto latinoamericano

Colonial Literature as a Space of Disjunction: Brazilian Literary Historiography in the Latin American Context

Paula Regina Siega1 

1 Universidade Estadual de Santa Cruz, Bahia, Brasil prsiega@uesc.br


RESUMO

Apoiando-nos em Walter Mignolo, Thomas Pollock, Philppe Caron e João Hansen, investigamos as transformações semânticas que vincularam a palavra "literatura" à noção de arte literária. Observando a predominância de critérios estético-nacionalistas na historiografia literária brasileira, pontuamos a resistência de Hansen, Haroldo de Campos e Teixeira Gomes à perspectiva historiográfica de Antonio Candido, trazendo as reflexões de Jauss acerca das histórias literárias que perseguem a finalidade romântica da plenitude nacional. Tomando as considerações de Eni Orlandi sobre a vigência oficial do português e do espanhol nas ex-colônias, refletimos sobre a sua proposição acerca da língua colonial como ponto de disjunção entre uma diferença real e um imaginário homogeneizante. Transpondo essa proposição para o terreno da literatura, tecemos pontos de contato com as ideias de dicotomia do mundo colonial (Fanon), da heterogeneidade e fragmentação constitutiva desse mundo (Cornejo) e da compensação semântica que, no discurso colonial, conduz a diferença ao reconhecível (Hansen).

Palavras-chave: nacionalismo; esteticismo; heterogeneidade; homogeneização

RESUMEN

Apoyándonos en Walter Mignolo, Thomas Pollock, Philppe Caron y João Hansen, investigamos las transformaciones semánticas que acercaron la palabra "literatura" a la noción de arte literario. Observando la predominancia de criterios estético-nacionalistas en la historiografía literaria brasilera, puntuamos la resistencia de Hansen, Haroldo de Campos y Teixeira Gomes a la perspectiva historiográfica de Antonio Candido, considerando las reflexiones de Jauss acerca de las historias literarias que persiguen la finalidad romántica de la plenitud nacional. Tomando las consideraciones de Eni Orlandi sobre la vigencia oficial del portugués y el español en las antiguas colonias, se reflexiona sobre su propuesta acerca de la lengua colonial como punto de disyunción entre una diferencia real y un imaginario homogeneizante. Transponiendo esta proposición para el terreno de la literatura, enlazamos puntos de contacto con las ideas de dicotomía del mundo colonial (Fanon), la heterogeneidad y fragmentación constitutiva de este mundo (Cornejo) y la compensación semántica que, en el discurso colonial, conduce la diferencia a lo reconocible (Hansen).

Palabras clave: nacionalismo; esteticismo; heterogeneidad; homogenización

ABSTRACT

Drawing on the ideas of Walter Mignolo, Thomas Pollock, Philippe Caron, and Juan Hansen, we examine the semantic transformations that gradually brought the term "literature" close to the notion of literary art. Observing the predominance of nationalist-aesthetic criteria in Brazilian literary historiography, we highlight the resistance to Candido's historiographical approach on the part of Hansen, Haroldo de Campos, and Teixeira Gomes, taking into account Jauss' reflections on literary histories that pursue the Romantic objective of national fulfilment. On the basis of Eni Orlandi's considerations on the official prevalence of Portuguese and Spanish in the former colonies, we reflect on her proposal regarding colonial language as a disjunction between an actual difference and a homogenizing imaginary. We then transfer that proposal to the field of literature in order to establish points of contact among the ideas of dichotomy of the colonial world (Fanon), the heterogeneity and fragmentation inherent to that world (Cornejo), and the semantic compensation that, in colonial discourse, leads the difference to the recognizable (Hansen).

Keywords: nationalism; aestheticism; heterogeneity; homogenization

EM 1993, NA INTRODUÇÃO A Escribir en el aire, Antonio Cornejo Polar sintetizava as principais problemáticas percorridas, em cerca de três décadas, pela crítica literária latino-americana: as utopias coletivas dos anos 1960, com as experimentações artísticas, de um lado, e a renovação dos instrumentos teórico-metodológicos, do outro; o retorno à "obsessão primordial" da identidade nacional que tentava chegar à índole da literatura latino-americana, para a qual se buscava uma teoria específica; a reivindicação da pluralidade heteróclita das literaturas do continente, enfatizando, no lugar da identidade, "as abissais diferenças que separam e contrapõem até mesmo com beligerância os vários universos socioculturais, e nos muitos ritmos históricos, que coexistem e se solapam inclusive dentro dos espaços nacionais"1 (6).

Eram as fases por que passara um projeto crítico-literário continental que tentara estabelecer uma visão em comum sobre as afinidades históricas, sociais e culturais da América Latina. Nesse contexto de integração intelectual, entre os anos 1970 e 1980, se dava a aproximação de Antonio Candido e Cornejo Polar, sem que isso, contudo, resultasse em uma proposição teórica compartilhada.2 Enquanto Cornejo Polar transformava o seu conceito de heterogeneidade conforme evoluíam os debates críticos latino-americanos, Candido mantinha a perspectiva identitária que sustentara na Formação da literatura brasileira (Cota). De grande impacto nas letras brasileiras, a concepção historiográfica de Candido deixaria como uma das principais heranças a difusão da expressão "manifestações literárias" para designar a produção letrada dos primeiros séculos da colonização do país. Assim, se, na América Hispânica, os historiadores de literatura se empenharam na operação de "nacionalizar a tradição literária pré-hispânica, como no século XIX se fez com a colonial"3 (Cornejo 7), no Brasil, a perspectiva historiográfica dominante se guiava por cortes que descartavam as partes do corpo literário que não serviam à genealogia identitária de nação.

Ao considerar especificamente a historiografia literária brasileira, procuramos analisar, aqui, os critérios estetizantes e teleológicos que a orientaram, somando-nos aos estudiosos que apontaram seu anacronismo. Como pretendemos arguir, a adoção de uma ideologia de caráter esteticista, finalizada ao reconhecimento de uma plenitude nacional nas letras brasileiras, tendeu a desconsiderar diferenças, ambiguidades e fraturas que fazem parte da complexa malha simbólica da realidade colonial que as habitou. É com esse espírito que, aproando em uma visão de literatura que inclui as noções de alteridade, diglosia e heterogeneidade como próprias do espaço colonial, somamos à de disjunção, tomada por sua vez a Eni Orlandi. Ao fazê-lo, esperamos contribuir aos debates acerca da literatura latino-americana, na expectativa de afirmação de um sistema de pensamento pelo qual a nossa existência, enquanto tradição literária, não se dê ao custo de nossa diminuição.

As historiografías finalistas de matriz romântico-nacionalista

Às margens da Revolução Industrial que se operava na Europa e nos Estados Unidos, as ex-potências marítimas de Portugal e Espanha assistiram, no início do século XIX, ao colapso do já decadente regime de exploração colonial. Enquanto, na América portuguesa, a proclamação da independência caracterizava-se como ruptura formal que mantinha o estatuto monárquico e as fronteiras intactas, na América espanhola, a descolonização se dava através de forte presença revolucionária, cujas tendências localistas facilitaram a divisão da colônia em unidades autônomas (Wasserman). Impossibilitavam-se, assim, as tentativas da unificação continental imaginada por Simon Bolívar, cujo projeto utópico de uma "Pátria grande" naufragava com a formação dos vários estados nacionais. À fragmentação política, observa Juan-Manuel García Ramos, seguir-se-ia a literária, com os ideais nacionalistas de matriz pré-romântica que penetrariam com facilidade no quebra-cabeças das repúblicas hispano-americanas.

Rapidamente, instrumentos intelectuais desta inesperada independência se põem a trabalhar nos desenho das novas literaturas nacionais. [...] Esforços literários abarcadores das primeiras décadas da Independência, como os liderados por Andrés Bello e continuados por um José Joaquim de Olmedo ou um José Maria Heredia, foram substituídos gradualmente, na medida em que se conformavam os novos povos como produtos da desintegração dos antigos vice-reinados e dos enfrentamentos dos caudilhos das guerras de libertação, por esforços literários centrados em levantar uma ata identitária das novas realidades nacionais.4 (70)

Nas fronteiras internas, as fraturas socioculturais eram costuradas através do que Cornejo Polar identifica como "discurso homogeneizante" que se prestava a harmonizar todo tipo de contradições. Por parte dos escritores brasileiros, o esforço de homogeneização se evidenciava em criações que faziam da nação e da natureza americana objetos da representação literária, sobretudo com a poesia e o romance indianistas, cujos ápices seriam atingidos com Gonçalves Dias e José de Alencar. Dava-se curso, assim, à idealização do passado pré-cabralino em que personagens como I-Juca Pirama, Peri ou Ubirajara se moviam no mesmo nível dos heróis da épica ocidental (Teixeira 179).

No Brasil, simultâneos ao processo de emancipação política foram os inícios das discussões acerca da literatura brasileira. Movidos pela identificação com o movimento romântico europeu, os homens das letras -guiados pelo ideário das relações entre poesia, povo e nação- passavam a discutir a formação do país e a necessidade de uma literatura que expressasse o espírito nacional, a se concretizar por obra do gênio que fosse capaz de captá-lo. Ilustrativas dessa tendência são as afirmações de Gonçalves de Magalhães no "Ensaio sobre a História da Literatura do Brasil", publicado, em 1836, na França, no primeiro volume da Revista Niteroy. A sua procura infrutífera por um "brasileiro distinto" entre os poucos poetas dos quais se tinha notícia, no Brasil e na Europa, fazia evidente a necessidade de um "gênio" que, a modelo de outras civilizações, representasse o seu "povo". Povo, bem entendido, seguindo uma compreensão burguesa que via como destinatárias da nova poesia romântica as camadas médias, ou seja, aquela parte da população nem sofisticada demais (como os nobres), nem grosseira demais (como os camponeses e operários), mas dotada de bom-senso, cultura e sensibilidade (como a burguesia). É evidente, portanto, que da ideia de povo brasileiro não participavam a vasta massa de escravos nem os indígenas contemporâneos a Gonçalves de Magalhães -estes últimos empurrados pela colonização para os rincões do país. Como, no período, o vate brasileiro parecia ainda não ter dado mostras de atividade, era necessário cultivá-lo.

O aparecimento de um grande homem é uma época para a história, e semelhante a uma joia preciosa, que só possuímos quando a podemos possuir, o grande homem jamais se apresenta quando nós não o merecemos. [...] Empreguemos os meios necessários, e nós possuiremos grandes homens. Se é verdade que a paga anima o trabalho, a recompensa do Gênio é a gloria. (Gonçalves de Magalhães 138)

Para obter a almejada glória, porém, o esperado "gênio" não poderia repetir o erro dos escritores do Brasil colonial -que teriam se limitado à imitação dos modelos metropolitanos-, devendo empenhar-se no resgate da paisagem brasileira, humana e física, fazendo da literatura um instrumento civilizatório para o progresso nacional. Segundo João Adolfo Hansen, é o fim patriótico-evolutivo da historiografia literária de Magalhães a estabelecer os critérios de validação estética da obra literária, acordada na medida em que esta preanuncia a realização de uma nação que, todavia, é posterior e exterior à própria obra ("Notas"). Estabelece-se, desse modo, o princípio teleológico da ideologia nacionalista romântica que orientaria as organizações historiográficas sucessivas, crentes em uma evolução da literatura dada em direta relação com a afirmação da identidade nacional. O vínculo histórico com a independência explica o esforço discursivo de demarcação da originalidade literária da ex-colônia e da busca por elementos que confirmassem a sua emancipação do tronco português: "Declarar a diferenciação entre a literatura produzida no Brasil em relação à produção poética da ex-metrópole foi a fórmula encontrada pelos intelectuais do país para contribuir com a tarefa de consolidação política da nação" (Zilberman e Moreira 9).5

Em oposição ao romantismo, mas ainda embebida de preocupação nacionalista, a crítica literária do fim do século XIX encontrava-se, nas palavras de Alberto Luiz Schneider, "sob o vigor da cultura beletrista e bacharelesca da República das letras", o que lhe conferia "um prestígio jamais alcançado em qualquer outro momento da vida intelectual brasileira" (57). Nesse clima, nascia a primeira grande tentativa de organização histórica do conjunto da produção literária do país, por obra de Silvio Romero que, em 1888, publicava a sua História da literatura brasileira. Filiada ao historicismo patriótico alemão, tratava-se de uma sistematização generalizante que buscava dar um respaldo científico à interpretação da sociedade brasileira através das mais variadas fontes -poesias, romances, crônicas, histórias, sermões, textos jurídicos etc.- pois, para Romero, "literatura era tudo aquilo que havia sido escrito e publicado em livro. Os textos, literários ou não, eram documentos que registravam a 'efusão do gênio nacional'" (Schneider 58).

Seria José Veríssimo, com a sua História da Literatura Brasileira, em 1916, a dar início a uma crítica que privilegiava as características estéticas do texto literário, restringindo-o aos limites do que fosse então considerada a arte da palavra, cujo valor era dado, principalmente, pela qualidade do acabamento formal, ou seja, pelo "bom gosto" da realização. "Literatura", escrevia Veríssimo, era "sinônimo de boas ou belas letras", ou seja, a "arte literária" escrita "com o propósito e a intuição dessa arte, isto é, com os artifícios de invenção e composição" (9). Ao restringir o termo "literatura" a um tipo específico de textos considerados "literários" -entenda-se, com características de obra estética-, o crítico se colocava em clara e consciente oposição aos critérios universalistas de Romero. Filiando-se a correntes germanistas, o antecessor de Veríssimo se opusera declaradamente ao beletrismo de matriz francesa afirmando que a "expressão literatura" compreendia "todas as manifestações da inteligência de um povo; -política, economia, arte, criações populares... e não, como era costume supor-se no Brasil, somente as intituladas belas artes" (Romero 13).

De parecer diverso, Veríssimo trazia à baila as "propriedades" ou "qualidades literárias" das obras, cujo vínculo com o beletrismo se evidenciava, por exemplo, na crítica tecida à retórica quinhentista de Gabriel Soares de Sousa no Tratado descritivo do Brasil: "Nem pelo estímulo que o originou, nem pelo seu propósito, nem pelo estilo é o livro de Gabriel Soares obra literária" (27). Se, na censura do crítico ao estilo do escritor subjazia a noção de um trabalho que não tinha características "artísticas", na crítica ao "estímulo" que gerara a obra, pesava o reproche ao fato de que esta não fosse movida pelo "desinteresse" característico do gozo estético, conceito de matriz iluminista. Assim, além da má qualidade formal do texto, depunha contra o seu caráter "literário" o fato de ter sido escrito com o objetivo de angariar o favor real, manifestado pelo "propósito de empreiteiro de facilitar-se a mercê impetrada, justificando-a sobejamente com a notícia interesseira da terra que se propunha a explorar" (Veríssimo 27).

O encerramento da literatura na categoria das obras pertencentes ao rol "desinteressado" das belas letras pautou muitas das sistematizações históricas que se seguiram. Entre elas, a de maior influência é certamente a Formação da literatura brasileira, de Antonio Candido, publicada em 1959. Assim como Veríssimo, Candido ressaltava a importância do "valor estético" de determinadas obras, cuja premissa desinteressada diferenciava a literatura -"criações de toque poético ficcional ou dramático" ("O direito" 174) - da "não literatura"- os enxertos "de moral ou política, de religião ou sociologia" ("Timidez" 83), e cuja "eficácia da expressão" poderia ser calculada pelo efeito emotivo que desencadeava no leitor culto (Formação 35).

Na sua análise, Candido procurava conjugar "método histórico" (dado histórico social) e "método estético" (juízo de valor fundado no gosto), chegando à formulação de que o seu era "um livro de crítica, mas escrito do ponto de vista histórico" (Formação 24). Era a partir da tentativa de síntese entre história e estética que o crítico delineava uma ligação profunda a unir arcadismo e romantismo brasileiros, entendendo que estas eram estéticas que, apesar de formalmente distantes, se aproximavam uma da outra na vocação histórica de encaminhar-se à "literatura plenamente constituída", rumo ao desenvolvimento da nossa originalidade (Formação 16). Estabelecida nos períodos árcades e românticos -considerados os momentos decisivos da formação literária nacional- essa vocação histórica seria a razão de a literatura brasileira configurar-se, desde o início, como literatura "empenhada", ou seja, engajada no processo histórico de formação da nação, assumindo para si a responsabilidade de elaboração de uma cultura brasileira. Como seus predecessores, Candido dava continuidade ao sistema de classificação da literatura em períodos sucessivos, fortalecendo a ideia de um processo linear que progride em direção da autonomia, conquistada enfim com a formação do Estado Nacional: galho secundário da literatura portuguesa, dela, a brasileira teria se emancipado no processo pós-independência, com o romantismo, continuando e renovando as marcas nativistas dos árcades mineiros.

Questionado sobre a exclusão de todo o período considerado "barroco" na literatura da era colonial, o estudioso rebateria as críticas recebidas através do prefácio à segunda edição do livro, de 1963. Nele, esclarecia que, entre os vários modos de entender a literatura, o seu fazia opção pela ideia de um sistema articulado sobre a tríade autor-obra-público, cuja interação dinâmica estabelecia uma ligação com a tradição precedente: "Sendo assim, a brasileira não nasce, é claro, mas se configura no decorrer do século XVIII, encorpando o processo formativo, que vinha de antes e continuou depois" (Formação 15-16). No corpo do livro, Candido construía a ideia de sistema literário como evento presente somente quando existissem as condições materiais para a produção-transmissão-recepção da obra, fluxo estabelecedor de uma continuidade ininterrupta que compunha a tradição, sem a qual não existiria a literatura, propriamente dita, mas somente parciais manifestações de uma prática letrada.

A ideia de literatura como sistema em interação dinâmica era referenciada por Candido, em nota, ao livro do estadunidense Thomas Clark Pollock The Nature of Literature, de 1942, que, por sua vez, procurava estabelecer as bases teóricas para a compreensão da literatura enquanto fenômeno social. Pollock considerava-a uma forma específica de linguagem e, como tal, mediada pelos passos fundamentais do processo comunicativo, sintetizados na ideia de produção-transmissão-recepção. Nesse prisma, a linguagem literária pressupunha: "(1) a atividade da pessoa que produz os sinais [linguísticos], (2) os próprios sinais como ocorrências físicas extra-orgânicas tais quais ondas de ar ou marcas no papel, e (3) a atividade da pessoa recebendo os sinais" (48).6 Relacionada aos estudos de Pollock, a opção crítica por uma compreensão social da literatura, por parte de Candido, é amplamente conhecida. Menos observada, no entanto, é a concepção beletrista que subjaz a essa opção, para cujo entendimento é útil atentar, na própria obra de Pollock e na de outros estudiosos, às investigações acerca das transformações semânticas que aproximam a palavra "literatura" da noção de arte literária.

A afirmação da noção beletrista de literatura

Ao discutir sobre as diferenças historicamente traçadas entre literatura e história na tradição ocidental, Walter Mignolo lembra que o primeiro termo, na Grécia antiga, era desconhecido, já que inexistia o conceito de littera (letra), e sim o de gramma, tendo sido Aristóteles a estabelecer a diferença entre poesia -entendida como arte e, portanto, imitação verossímil- e história -que carregava a noção de veracidade (coisa realmente acontecida). Na Idade Média, com a tradução latina de gramma por littera para referir tudo o que fosse escrito, se afirma a figura do litteratus -equivalente ao clericus- como homem de saber associado à leitura (Mignolo). Posteriormente, com a aproximação do conceito de literatura ao de poesia -cujo sentido aristotélico de imitação era ligado ao de falsificação e, por essa razão, de ficção-, a primeira passou a adquirir um significado mais restrito, entrando para o sistema das artes, enquanto a história passou a integrar o rol das ciências, organizada não mais por princípios retóricos, mas científicos (Mignolo), conforme o modelo experimental de verificação de uma hipótese a partir de leis universais.

Em seu estudo sobre as mudanças de significado da literatura, Pollock também considera o processo de separação entre as letras e as ciências para que o termo viesse a adquirir os sentidos que lhe são atribuídos a partir do século XIX, quando se afirmava a noção de literatura como escrita que se distinguia pela beleza da forma ou pelo efeito emocional que produzia. Anteriormente, pontuava o teórico, a palavra se referia ao corpo de escritos produzidos em determinado país ou período, enquanto, para os textos que se distinguissem por beleza ou efeito emocional, eram usados termos como "letras", "drama", "ficção", "poesia" ou "litterare humaniores" O novo significado vinha a captar o senso moderno e especializado da palavra, que expressava a necessidade de realizar a separação, dos demais textos, do corpo de escritos que incluía a poesia, mas, para o qual, o termo "poesia" já não era mais satisfatório enquanto referente. Com a divisão do trabalho intelectual entre os campos da ciência e das artes, na qual era inserida a literatura, restringia-se o âmbito da especialização literária, formado por sua vez durante o romantismo, período em que a figura do poeta se sobressaíra em relação à do cientista. Dessa delimitação de campo, teria resultado o contágio entre o valor agregado pelo romantismo à poesia -considerada a mais elevada das linguagens- e a literatura, cujo uso especializado articulava-se também à especialização da ciência que, de conhecimento geral, passara a referir-se, no início do século XVIII, exclusivamente aos métodos experimentais. Assim,

[p]ara aqueles que no período romântico aceitaram as premissas do pensamento transcendental, poesia com todas as suas implicações era um termo bastante satisfatório, mas conforme o século XIX progrediu e o significado da abordagem indutiva ao conhecimento ficou óbvia para o mundo das letras, o sentido especializado de literatura tornou-se necessário. (Pollock 8-9)

Recentemente, também o estudioso canadense Philippe Caron tem considerado o processo de diferenciação entre os campos da ciência e o das letras para compreender a afirmação da palavra "literatura" com o sentido normalmente atribuído a ela nos dias de hoje. Investigando o termo na língua francesa, Caron revela as condições históricas que levaram à sua significação contemporânea, sinalizando os séculos XVI e, sobretudo, XVII, como marcos no caminho que conduziu à transformação de divisões tradicionais da escolástica -por exemplo, artes liberais / artes mecânicas- às divisões modernas como belas letras / ciências exatas.

Citando o discurso sobre o método em que Descartes falava das letras para referir-se ao mundo do conhecimento -no qual incluía eloquência, poesia, matemática, teologia, jurisprudência, medicina e demais ciências-, Caron lembra que o sentido da expressão era dado pela Enciclopédia do Saber Universal do século XVII, que a intercambiava facilmente com a palavra "ciências". A partir das primeiras décadas do século, o léxico francês incorporara o termo belles-lettres, que permanecera com ampla significação entre 1620 e 1650 para, num segundo momento, adquirir conotações estetizantes, em sintonia com os interesses de uma elite mundana para qual a cultura era utilizada como adorno para brilhar nos salões (Caron). Perdendo a sua antiga amplitude, o termo passava a denotar um conjunto de textos limitados, sobretudo, aos produzidos por oradores, poetas da antiguidade clássica e grandes historiadores. Contemporaneamente, enquanto as letras humanas se circunscreviam ao estudo das línguas cultas do homens das letras, e as bonne-lettres designavam a ilustração jurídica dos homens de toga, as belles-lettres faziam referência sempre mais às obras primas da literatura, indicando o gosto dominante da corte, à qual davam um verniz de ilustração: "a antiguidade já não era a grande fonte do pensamento. Para esta nova elite, ela cumpria uma função muito mais ornamental" (Caron 5).

A lexicalização das belas-letras foi acompanhada pela das ciências, que passou a referir-se, preferencialmente, às da observação e do cálculo, excluindo de tal domínio as artes da retórica (Caron). Dessa forma, criava-se uma clara separação entre as ciências duras e as ciências do espírito, num binarismo fadado a acentuar-se ao longo do tempo e que ia associando às últimas a palavra "literatura", cuja significação passava a ser o de competência advinda do estudo profundo das Letras, aproximando-a das noções de doutrina e erudição. Em 1727, aponta Caron, um léxico atualizado agregava à palavra "literatura" o universo das belas-letras, numa operação hedonista própria de uma cultura de elite. Quantitativamente, o termo belles-lettres foi predominante até a metade do século XVIII para designar as obras que hoje são consideradas literárias, enquanto o termo "literatura" era usado como seu sinônimo ou substituto; mas, a partir de 1760, a relação se inverteria, tornando-se mais frequente o termo "literatura", ao qual belles-lettres podia funcionar como substituto lexical. Dessa forma, conclui Caron, manifestava-se um de ponto de vista segundo o qual a palavra "literatura" indicava um estudo reflexivo das grandes obras, com uma preocupação sempre menos retórica e mais especulativa que estaria na origem das noções que, nos séculos XIX e XX, atrelariam à literatura a noção de obra de arte.

Pertinentes à percepção da afirmação do sentido beletrista da palavra "literatura" são também as considerações do historiador brasileiro João Adolfo Hansen, observador do fato de que à valorização da poesia, a partir do século XVIII, acompanha-se a desvalorização da retórica e de suas artes ("Notas"). Estas, durante o iluminismo, passavam a ser associadas à ideia de instrumento de persuasão do combatido Antigo Regime e, como práticas contrárias à inovação, desqualificadas como expressão de confusão, mau gosto ou irracionalidade. Hansen aponta para a impossibilidade da adoção de critérios estéticos para o entendimento dos significados que, possivelmente, tinha a produção letrada dos séculos XVII e XVIII, seguidora como era do modelo retórico e mimético de representação. Nesse modelo, não se encontrava o sentido romântico que delimitava, reivindicando-a, uma forte subjetividade expressiva manifesta em categorias quais autor, originalidade, plágio ou psicologia, e tampouco existia a figura do crítico literário como especialista que julga e define, o sentido das obras a partir de critérios estéticos, ou seja, a partir do esgotamento da validade da mimese aristotélica (Hansen, "Notas"). Anteriormente ao sentido romântico finalista de tempo, pontua Hansen, "não existe 'estética', mas retórica e poética. A reconstrução arqueológica destas categorías pode ser oportuna para quem deseje ocupar-se destas artes em um trabalho histórico"7 ("Notas" 130).

Como visto, a ressemantização da palavra "literatura" -contaminada pelo significado atribuído às belas letras- é desenvolvida em conjunto com o processo de separação do campo científico do literário, realocado em um novo domínio, o da estética. Esta última, por sua vez, germinara no terreno da especulação filosófica, tendo sido recuperada do grego por Baumgarten, no século XVIII, para designar a esfera do conhecimento sensível. Foi sobre esta noção que Kant baseou a sua ideia de "juízo estético", estruturada sobre a premissa da inata aptidão humana ao sentimento do belo, considerado como puro, desinteressado -ou seja, sem fins utilitários- e universal. Em seguida, os românticos, se, por um lado, recusariam o domínio que os iluministas designavam à ciência sobre as demais esferas do conhecimento, por outro, dariam continuidade à separação entre conhecimento sensível e conhecimento lógico, defendendo a superioridade da poesia sobre as demais manifestações do saber humano.

Contemporâneas ao processo das independências coloniais, num momento em que são formados os novos estados nacionais nas Américas e na Europa, as categorias românticas incidem fortemente sobre a historiografia literária brasileira, estabelecendo como eixos dominantes os pressupostos beletrista e nacionalista-evolutivo. Estes seriam, de fato, a base estrutural da ideia de uma autonomia literária que acompanhava, em seu desenvolvimento, o processo político da formação da nação.8 Filiados ao pensamento moderno ocidental, tais critérios orientariam a seleção dos textos que passariam a compor o cânone nacional, imbricando-se tanto às discussões referentes à nacionalidade quanto às que abordam as características do objeto literário. Nas primeiras como nas segundas, afirmam-se ideias enraizadas no iluminismo e vindas à superfície, no Brasil, com os contornos marcadamente românticos da supremacia do nacional sobre o não nacional e do poético sobre o não poético. Se, com Silvio Romero, todos os textos vinham a alimentar o espírito da nação, com José Veríssimo, as letras nacionais passavam a ser delimitadas pelo ponto de vista estético, conformando-se à visão do belo "desinteressado" e colocando as bases dos julgamentos valorativos que seriam expressos a partir de então. Chega-se, assim, à "interpretação, visando o juízo crítico, fundado sobretudo no gosto" (10), como escreveria Antonio Candido ao explicitar os fundamentos da Formação da literatura brasileira.

Resistências teóricas à Formação da literatura brasileira

Nas pesquisas que têm como objeto as literaturas contemporâneas, coube sobretudo aos estudos culturais o papel de pontuar o caráter exclusivista das concepções fundadas sobre o gosto, já que estas tendem a considerar como artístico somente o que é realizado à imagem e semelhança do que a classe que efetua o julgamento estético considera agradável. A prevalência do viés beletrista revela-se demasiadamente restritiva também para os estudos interessados nas literaturas do passado, já que, por tal critério, a seleção dos textos que merecem ou não figurar nos compêndios de literatura nacional opera-se de forma anacrônica, ignorando as condições históricas de produção e recepção. Desconsidera-se, assim, que, no caso de literaturas forjadas a partir de um processo de colonização, como as latino-americanas, são inicialmente transplantadas práticas de escrita e interpretação proeminentemente retóricas, voltadas exatamente aos "enxertos políticos, morais, religiosos e sociais" que passariam a ser considerados "não literários" pela crítica do século XX. Descartar essa prática letrada com base em julgamentos estéticos que, naquela época, não faziam parte do horizonte de expectativas próprio dos gêneros utilizados para dizer da e na colônia (cartas, crônicas, relatos de viagem etc.) significa amputar uma parte expressiva de história literária, sobretudo se consideramos que muitos dos tópicos que seriam explorados pela produção poética subsequente foram firmados naqueles momento e naqueles textos. Como demonstram estudos sobre os escritos que a tradição crítica formada a partir de Veríssimo considera como "literatura de informação" -a prosa quinhentista sobre o Brasil-, a teoria literária e sua cognição a respeito das práticas interpretativas de gêneros letrados como as cartas jesuíticas têm muito a contribuir para o seu desvendamento, evidenciando o legítimo pertencimento de tais textos ao campo dos estudos literários. Em outras palavras, imprópria não é a literatura feita na colônia, mas seu critério de análise.

Em relação à permanência da concepção ontológico-nacionalista da historiografia literária, os problemas referentes à seleção do que pertence ou não ao cânone brasileiro também permanecem abertos. Vencedora na disputa entre os critérios universalistas ou estéticos na delimitação da literatura nacional, a síntese entre beletrismo e nacionalismo proposta pela história de Veríssimo estabelecia o que poderia ser considerado literatura brasileira: tratava-se esta de uma literatura escrita no Brasil e que expressava ideias e sentimentos que não mais se confundiam com os portugueses. Mantendo uma classificação evolutiva da produção literária nacional, o crítico dividia-a em dois períodos: o colonial, em que se dera a formação e o desenvolvimento da literatura brasileira, e o nacional, que, iniciando com o romantismo, assinalava a etapa da emancipação literária da nação. Ligando os dois períodos estaria uma fase de transição identificada com a produção dos neoclássicos mineiros. A classificação de Veríssimo colocava como marco inicial de nossa literatura o ano de 1601, identificada com o primeiro texto poético (e, portanto, "artístico") produzido por escritor nascido no Brasil: a Prosopopeia, de Bento Teixeira, cujo único mérito, pontuava, era o da prioridade. No balanço geral do patrimônio simbólico de nossa produção escrita, o primeiro aspecto problemático desse "marco das origens" é a exclusão do conjunto da literatura brasileira daquilo que se produziu durante o século XVI, ou seja, a vasta literatura de viagem, crônicas, cartas e sermões, além de toda a produção poética de José de Anchieta.

Sucessivamente, Candido operaria uma ulterior remoção do passado literário, já que a formação da literatura brasileira é situada na segunda metade do século XVIII, a partir do arcadismo. A sua ideia de sistema literário desenharia a inexistência de um mecanismo de transmissão textual anterior às academias, já que defende a ideia de que, se existiam escritos e escritores, não existiam leitores e, portanto, o processo de transmissão que fundamentava a tradição não tinha lugar. Evidentemente, manifesta-se, na historiografia de Candido, uma concepção da história (e da tradição) como continuum que não admite interrupções ou descontinuidades, pois, ao impedirem o traçado de uma linha sucessória, tais interrupções comprometem o sentido finalista de uma narrativa que deve, forçosamente, perfazer a ideia de totalidade orgânica de características "literárias" e "nacionais". Se, para Candido, a "literatura propriamente dita" dava frutos de sabor brasileiro somente com a poesia árcade mineira, tudo o que a antecedia era uma espécie de esboço desarticulado dessa literatura, desde então identificado com a expressão "manifestações literárias", características de um período que ia "dos autos e peças de Anchieta às Academias do século XVIII" (Formação 23-24).

Uma aguerrida resistência à periodização proposta por Candido foi interposta por Haroldo de Campos, nos anos 1980. O poeta, tradutor e crítico literário questionou -em ensaio de 1981 que abordava a poesia concreta e suas relações com o barroco- o "nacionalismo ontológico" calcado sobre o modelo organicista-biológico para o qual uma literatura passava por diversas fases que atingiam a perfeição quando capazes de expressar organicamente o caráter da nação. "Trata-se", escrevia Campos, "de um episódio da metafísica ocidental da presença, transferido para as nossas latitudes tropicais, e que não se dá bem conta do sentido último dessa translação" ("Da razão" 236).

Pouco depois, em O seqüestro do barroco na Formação da literatura brasileira, de 1989, Haroldo de Campos partiria das considerações de Jauss acerca da história das literaturas nacionais para assinalar a concepção romântica subjacente à história literária de Candido, réu de considerar a literatura como processo que culminava na expressão da nacionalidade. Os questionamentos de Campos acerca do projeto romântico-nacionalista de historiografia literária são coerentes com as colocações de Hans Robert Jauss sobre os fundamentos da história da literatura, disciplina que entrava em crise na medida em que o inteiro discurso histórico passava a ser colocado em questão.

Em sua célebre A história da literatura como provocação à teoria literária, título da sua aula inaugural na Universidade de Constança, em 1967, Jauss repercorria a linha traçada pelo raciocínio dos pioneiros da história da literatura alemã, orientados pelo princípio de que as obras literárias, consideradas diacronicamente, refletiam o caminho percorrido por um povo em busca de sua individualidade nacional. Para tanto, indicava o objetivo patriótico de historiadores como Georg Gottfried Gervinus, que fazia coincidir o desenvolvimento e ápice da formação política da nação alemã com o desenvolvimento e ápice de seu desenvolvimento literário. Jauss desnudava orientação teleológica que, de Schiller a Gervinus, fundamentara a compreensão dos objetos literários, entendidos como formas atravessadas por uma ideia central idêntica à que se manifestava nos acontecimentos históricos de que eram contemporâneos. A serviço da ideologia nacionalista e adotado pela história da literatura, essa orientação teleológica criava uma genealogia finalista capaz de demonstrar que um povo como o alemão -herdeiro da civilização grega senão por filiação natural, por aptidão "espiritual"- era predestinado ao seu destino histórico, entendido como marcha rumo à unificação da nação, expressa literariamente por um modelo clássico nacional. Esse finalismo estava na origem da história literária do século XIX, que se apoiara "na convicção de que a idéia da individualidade nacional seria a parte invisível de todo fato e de que essa idéia tornaria representável a forma da história também a partir de uma sequência de obras literárias" (Jauss 12).

Afinado com o pensamento de Jauss, Campos observa que a seleção historiográfica de Candido elegia próprio no classicismo nacional os modelos de partida de sua literatura, resultando no cancelamento do Barroco da história literária brasileira. Para Campos, este era o resultado de um modelo interpretativo que identificava a literatura com a ontologia nacionalista do projeto romântico, integrando-o a um gosto classicista e antibarroco, e daí resultaria a síntese entre romantismo e classicismo como princípios formadores da literatura brasileira. Ao privilegiar uma perspectiva de tipo linear-evolutivo, a história de literária de Candido teria integrado as diversas fases da literatura numa narrativa que tentava encadear de forma coerente o caráter nacional, num modelo descritivo e argumentativo que "é necessariamente redutor: o que nele não cabe é posto à parte, rotulado de 'manifestações literárias' por oposição à literatura propriamentedita [sic], à literatura enquanto 'sistema'" ("O sequestro" 44).

Ainda que expressão "manifestações literárias" -que passou a figurar em muitos livros, discursos e programas dos cursos de Letras do país- permita que se contabilizem as produções escritas de ou sobre o Brasil no período colonial, ela está longe de resolver o problema das origens da literatura brasileira e seu percurso de formação. Uma perspectiva pós-colonial, por exemplo, não encontraria dificuldades em problematizar o termo, observando nele a manifestação do complexo de inferioridade do "particular" em relação ao "universal", do latino-americano em relação ao europeu. De fato, na oposição entre uma literatura plenamente formada alhures e a mera manifestação literária local, é fácil perceber a incorporação da ideia da literatura como coisa imprópria dos brasileiros -"literatura propriamente dita" seria uma exclusividade portuguesa, no período colonial-, reforçando a noção de incompletude como traço característico da colônia em relação à metrópole.

Orientada pela teleologia nacionalista, a história literária de matriz romântica persegue a finalidade da representação plena (ou clássica) da nação, selecionando no passado literário somente as obras que possam ser interpretadas como anúncio dessa representação por vir. Parafraseando Candido quando diz que a literatura brasileira é uma "literatura empenhada", pode-se dizer que, formada a partir do romantismo, mais empenhada é a historiografia literária brasileira, que assume para si a função histórica de delimitar o nascimento e desenvolvimento de uma literatura nacional. Observados à luz dos critérios beletrista-nacionalistas dessa narrativa finalística, as obras ou autores que não anunciem o evento estético-político da literatura plenamente brasileira ou que configurem lacunas no modelo continuísta da tradição são, forçadamente, uma não literatura. Historicamente anacrônicos, tais critérios interpretam as obras estabelecendo uma arbitrária continuidade com a ideia de nação, movidos como são pela busca -da qual são também indutores - de indícios anunciadores de uma totalidade futura.

É, neste sentido, o que ocorre com a história literária brasileira, que propõe os autores do século XVII e ainda da primeira metade do xviii como "manifestações", parciais, do que deverá vir depois como plenitude do "nacional", como se os autores seiscentistas fossem românticos ou pré-românticos, duzentos anos antes do romantismo. O pressuposto iluminista acostuma acusar invariavelmente o passado de não ter sido o que a crítica pressupõe que deveria ter sido para que se realize satisfatoriamente a evolução temporal como progresso.9 (Hansen, "Notas" 129)

Ao tratar da historiografia literária brasileira, especialmente a proposta por Antonio Candido, João Carlos Teixeira Gomes fala de conceitos mecanicamente repetidos que deformam a avaliação da literatura do país em seu processo de formação, considerada a partir de um sentimento de inferioridade em relação às grandes literaturas ocidentais. Guiada por prevenções antisseiscentistas herdadas da crítica portuguesa, tal historiografia reafirma uma visão que atribui pouco valor às produções anteriores ao movimento academicista do século XVIII, tidas como reflexo insignificante da literatura portuguesa (Teixeira 1995). Dessa feita,

o Prof. Antonio Candido, conquanto tenha escrito um livro que, por todos os títulos, honra os estudos literários no Brasil, em termos práticos favoreceu também a supressão de mais de 200 anos de produção literária nacional, tida em geral como secundária, mas, na verdade, ainda precariamente pesquisada e, portanto, imperfeitamente conhecida. (Teixeira 76)

Língua portuguesa e literatura brasileira: um complexo colonial

Como a literatura, também as discussões sobre a língua da qual os textos literários se compõem passaram a considerar, no século XIX, a questão da diferenciação em relação a Portugal. Se a nova nação ia produzindo a sua própria literatura ao mesmo tempo que historiografava as suas origens, características e etapas evolutivas, a busca por uma língua que expressasse o "espírito nacional" passou a ser realizada pela pena dos poetas e prosadores. Do anseio por uma língua brasileira que marcasse a diferença em relação à dos portugueses, o mais expressivo exemplo, em época romântica, foi a incorporação da língua tupi pelo indianismo de Gonçalves Dias e José de Alencar, este último empenhado também na aclimatação tropical de vocábulos europeus.10

Apesar do afã nacionalista, a língua falada e escrita na ex-colônia continuou sendo o português, outorgado juridicamente língua oficial do Brasil, enquanto o país continuou a viver, no seu dia a dia, uma língua muito diferente daquela que lhe foi infligida. Essa existência dupla entre línguas que se contradizem é expressa de forma bem-humorada por Mário de Andrade, no manuscrito da Gramatiquinha da fala brasileira, obra inacabada em que tentava pôr as bases gramaticais da língua falada no Brasil.

O portugues comum é incontestavelmente mais estilista que o brasileiro comum. As suas cartas são mais bem escritas, isto é, tem as ideias exprimidas com maior clareza e rapidez. Será que o portugues é mais inteligente ou mais artista que o brasileiro? É ridículo pensar isso. O que se dá é que o portugues comum quando escreve, escreve o que aprendeu nas gramaticas e que êle fala todo o dia enquanto o brasileiro se vê obrigado a abandonar o que fala todo o dia pra se lembrar das regras da gramatica que mecanicamente aprendeu na escola e de que pouco se utilizou. O brasileiro pra escrever larga do chapelão, e da boa ou do simples paletó praceano e enverga o fraque didático. O portugues escreve como está, manga arregaçada e chinelo, sem meia. Resultado: está a seu gosto, mexe-se bem. O brasileiro, coitado! nem pode sentar porque amassa o rabo do fraque.11 (Citado em Novais 26)

O impulso crítico de Mário de Andrade é seguido por Eni Orlandi, estudiosa do discurso para quem a língua europeia aqui desembarcada instituiu um movimento de deslizamento que deu forma a outra língua, a brasileira. Tratar-se-ia de um deslizamento de significados que teria modificado e desdobrado maneiras de dizer, já que a relação entre as palavras e as coisas do Brasil jamais foi perfeitamente coincidente com a relação entre as palavras e as coisas de Portugal. Essa diferença material, sentida concretamente no quotidiano dos brasileiros, é negada por uma identidade imaginária, gerando uma ambivalência (ou fratura) que, tipicamente colonial, faz com que o colonizado viva a própria realidade tendo como referência, o imaginário trazido e imposto pelo colonizador. Por isso, nos países da América Latina, explica Orlandi, línguas como o espanhol ou o português possuem uma dupla identidade: fala-se a mesma língua de Espanha e Portugal, mas fala-se diferentemente, e quem não fala corretamente, no padrão europeu, está falando errado. O que significa, continua a estudiosa, que existe um fundo falso, uma dupla presença em que a mesma língua abriga um diferente que é historicamente outro, já que português brasileiro e português de Portugal assumem uma identidade que não se verifica na prática: "Ao falarmos o português, nós, brasileiros, estamos sempre nesse ponto de disjunção obrigada: nossa língua significa em uma filiação de memória heterogênea" (Orlandi 30), pois, embora seja, na realidade, uma língua distinta, a história da colonização produz um imaginário unificante e homogeneizante.

A direção do pensamento de Orlandi pode ser útil para orientar também as discussões em torno aos problemas de definição da literatura brasileira, se se considera esse espaço de ambiguidade e disjunção obrigatória como parte intrínseca da experiência colonial. A partir da chegada do colonizador português, uma tradição letrada se exercita na escrita e leitura dos temas das terras e gentes dos Brasis. Como a língua falada na colônia, a literatura que dela se nutre é calcada sobre uma memória heterogênea para referir o que encontra no novo território, significado a partir de um processo analógico que, informando sobre ele a um destinatário ausente, ficcionaliza-o, acomodando-o às convenções letradas então em uso. Desse ponto de vista, recorremos ao pensamento de Cornejo Polar quando argumenta sobre a heterogeneidade das literaturas latino-americanas, lembrando que "debaixo de sua textura 'ocidental, subjazem formas de consciência e vozes nativas"12 para pontuar a duplicidade congênita marcada pelo par oralidade e escritura -ou voz e letra- em um contexto multiliguístico (10). Essa tessitura múltipla configura o texto como espaço de fricção em que coexistem, muitas vezes contradizendo-se e em disputa pelo que Cornejo chama de "hegemonia semântica" (11), discursos de procedências e tempos variados que conferem ao tecido literário densidade e espessura históricas desestabilizadoras. Nos textos da cultura latino-americana, seria possível ler, por esse viés, uma estratificação profunda, plasmada por muitas vozes, silêncios, ambiguidades e contradições, evidenciando processos e lutas em que um discurso revela-se feito de tantos outros, concordes somente por imposição autoritária.

Para sustentar nosso raciocínio, tragamos em consideração o estudo de João Hansen ("O nu e a luz") sobre os sentidos verossímeis das cartas jesuíticas no Brasil, no século XVI. Hansen desvenda a circularidade do código daquelas cartas constatando a identidade estabelecida entre emissor e destinatário, que se reconhecem mutuamente como membros de um único corpo político e místico, ao qual eram integrados a colônia e seus habitantes. Tal corpo é reproduzido, por sua vez, em convenções de escrita e leitura que traduzem o desconhecido através de critérios teológicos e retóricos que, compartilhados, identificam e unificam os temas da terra ao imaginário da metrópole. Assim, na correspondência jesuítica,

a enunciação produz a função de reconhecimento do destinatário como um pressuposto, modelando-o como ausente e ignorante dos temas locais [...], e, simultaneamente, como presente e conhecedor dos códigos retóricos--doutrinários que os interpretam. ("O nu e a luz" 93)

Ocorre, elucida Hansen, uma compensação do desnível semântico da narração (o conhecimento do emissário/o desconhecimento do receptor) pelo ato interpretativo de leitura que, através do horizonte comum dos códigos teológico-político-estilísticos em uso, conduzem a diferença ao terreno do reconhecível. Assim, os agentes da correspondência "não pensam a nova terra e o gentio que a habita antropologicamente, deve ser óbvio, mas o propõem sempre como o Mesmo, apenas que muito distanciado da boa semelhança católica", fazendo com que "toda diferença da experiência [seja] traduzida como um análogo distante, por isso mesmo reconhecível e identificável" ("O nu e a luz" 94). O que nos permite dizer que, como na língua, na literatura colonial, atua-se um processo de homogeneização que apaga diferenças materiais através de equivalências de ordem imaginária, mediadas pelas convenções expressivas e interpretativas dos gêneros letrados e operadas por analogias. De forma semelhante ao processo linguístico, o processo de formação literária brasileira produz um "mesmo" que abriga um "outro", apagando-o: de propriedade portuguesa, a literatura que se produz no/sobre o Brasil colônia é também um ponto de disjunção obrigada, habitada como é pela duplicidade, fruto de uma cisão que é característica da condição colonial. "O mundo do colonizado é um mundo cortado em dois",13 escrevia Franz Fanon, discorrendo sobre a dicotomia infligida ao mundo pela colonização e que os movimentos de libertação - obedecendo a um irresistível impulso dialético -tendiam a homogeneizar com base nas ideias de nação ou de raça (7). Com Cornejo Polar, poderíamos falar desse mundo como espaço constituído por fissuras e contradições, habitado por um sujeito heterogêneo que se apresenta fragmentado, interseccionado como é por identidades oscilantes e variadas que, entrecruzando-se e desagregando-o, negam sua identidade monolítica. Na esteira de tais perspectivas, considerar a literatura brasileira, em suas origens coloniais, como espaço de disjunção em que a realidade é codificada, pela escrita, segundo uma memória letrada que a decodifica alhures, é propor aos estudos literários que resistam ao exercício de homogeneização de nossa realidade literária a critérios que a diminuem.

Últimas considerações

Se o caminho de separação entre ciência e literatura fez, desta última, um campo da especialização estética, na qual o poético prevaleceu sobre o retórico, a história literária que se forma a partir do século XVIII se orienta por uma concepção linear que, como lembra Hansen, entende o tempo como um contínuo de superações progressivas finalizadas à plenitude do Estado Nacional ("Notas"). A consequência mais evidente dos critérios nacional--beletristas para a seleção e avaliação dos textos a constituírem o cânone é a mutilação de parte considerável da produção escrita da ex-colônia, pois, ao situar o seu marco inicial neste ou naquele texto de características "estéticas" ou "nacionais", aplicam-se à cultura letrada colonial práticas interpretativas orientadas por visões de mundo que se afirmam somente depois.

Orientada ao fim de encontrar no passado as confirmações pretendidas pelo presente, a historiografia literária brasileira voltou-se à localização das obras e dos autores que sinalizassem os momentos decisivos de sua diferenciação de Portugal. No entanto, essa diferença, essa heterogeneidade não se manifesta a partir de um determinado período, mas é parte constitutiva da literatura brasileira enquanto literatura obrigada a confrontar-se com o problema da própria definição em um contexto colonial, que comporta as ideias de duplicidade, fratura e disjunção. A possibilidade de colher essa heterogeneidade discursiva está na aplicação de um conceito mais amplo de literatura, que problematize o embate interpretativo de

duas consciências que desde seu primeiro encontro se repelem através da matéria linguística em que se formalizam, o que pressagia a extensão de um campo de enfrentamentos muito mais profundos e dramáticos, mas também a complexidade de densos e confusos processos de imbricação transcultural.14 (Polar 22)

Entende-se, portanto, que a origem da literatura brasileira não se atrela ao surgimento de uma arte literária realizada por brasileiros, mas data do instante em que se dá o primeiro contato do colonizador com o colonizado, o primeiro embate da língua estrangeira com as línguas da terra. Até onde se tem notícia, a primazia na representação escrita de tal encontro coube à notória carta de Pero Vaz de Caminha a El Rei Dom Manuel, em 1500, cuja grafia marca, também, o silêncio imposto ao indígena, de cuja versão não dispomos. Para o que viria a ser esse "ramo da literatura portuguesa" que brotava em outra terra e frutificava em outra língua, contribuíram esse e tantos outros textos produzidos e transmitidos por uma tradição letrada que a colônia continuou, conformando-a à própria realidade ao mesmo tempo que se conformava às suas convenções. O que permite afirmar que a constituição problemática da literatura brasileira e de suas histórias não se resolve na procura de um marco de partida e de chegada, mas na constatação da impossibilidade de considerá-la a partir de tais marcos, senão ao preço da eterna submissão à ideia de incompletude, impropriedade ou indefinição como características da produção cultural latino-americana.

Referências

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1 As seguintes traduções são nossas. No original: "las abisales diferencias que separan y contraponen, hasta con beligerancia, a los varios universos socio-culturales, y en los muchos ritmos históricos, que coexisten y se solapan inclusive dentro de los espacios nacionales".

2O contexto da aproximação entre os dois intelectuais, bem como as afinidades e diferenças entre seus projetos críticos e os limites regionais de suas difusões são tratados por Débora Cota.

3No original: "nacionalizar la tradición literaria prehispánica, como en el xix se hizo con la colonial".

4No original: "Muy pronto, instrumentos intelectuales de esa inesperada independencia se ponen a trabajar en el diseño de las nuevas literaturas nacionales. [...] Esfuerzos literarios abarcadores de las primeras décadas de la Independencia, como los liderados por Andrés Bello y continuados por un José Joaquín de Olmedo o un José María Heredia, fueron sustituidos gradualmente, a medida que se conformaban los nuevos pueblos producto del desgajamiento de los antiguos virreinatos y los enfrentamientos de los caudillos de las guerras de liberación, por esfuerzos literarios centrados en levantar acta identitaria de las nuevas realidades nacionales".

5Em 1826 —enquanto Almeida Garret, em Portugal, integrava a produção de poetas nacionais ao Parnaso Lusitano—, a França sediava a primeira separação oficial entre as literaturas brasileira e a portuguesa, com Ferdinand Denis, que anexava o Resume de la histoire litteraire du Brasil ao Resume da la histoire litteraire du Portugal. A eles seguiu-se o Parnaso Brasileiro, primeira antologia da poesia produzida no Brasil, organizada por Januário da Cunha Barbosa e publicada entre 1829 e 1831 pela Tipografia Imperial e Nacional, sucessora da Imprensa Régia, criada em 1808 por Dom João VI. Logo depois, em 1835, o general Abreu Lima publicava o Bosquejo histórico, político e literário do Brasil e, em 1836, em Paris, Gonçalves Magalhães dava à luz o seu "Ensaio sobre a literatura do Brasil", na Revista Niteroy. Em 1840, saía em capítulos, no jornal O despertador, o estudo que Joaquim Norberto de Sousa e Silva publicaria no ano seguinte como "Bosquejo da história da poesia brasileira", e que estabelecia um sistema periódico que classificaa literatura brasileira em fases, constantemente retomado pelos historiadores que o sucederam (Mendonça). De 1850 a 1853, vinham à luz os três tomos de "Florilégio da Poesia Brasileira", organizado por Francisco Adolfo de Varnhagen, que escrevera antes um "Ensaio Histórico sobre as Letras no Brasil", aos quais se seguiram a "História da Literatura Brasileira", publicada entre 1859 e 1862 por Norberto de Sousa e Silva, o Curso Elementar de Literatura Nacional (1862), do cônego Fernandes Pinheiros e o Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira (1866), de Francisco Sotero dos Reis (Mendonça).

6As traduções são de nossa autoria.

7No original: "no hay 'estética, sino retórica y poética. La reconstitución arqueológica de esas categorías puede ser oportuna para quien desee ocuparse de esas artes en un trabajo histórico".

8Útil lembrar a descrição de João Hansen acerca da concepção de tempo histórico romântico: "O tempo da historiografia literária romântica, à qual ainda estamos parcial mente presos. Nela, desde o século XIX, o tempo é entendido como evolução, contradição, superação e progresso, não existindo nele nada parecido com um princípio absoluto que se repete. Na consideração das artes, este tempo implica categorias românticas e expressivas, como 'subjetividade psicológica' e 'autoria, e outras instâncias, como o 'artista, invenção do século XVIII, a mercadoria 'originalidade, a competição no mercado dos bens culturais, a crítica literária e a das artes etc., que por definição negam ou anulam a retórica e a teologia política das práticas de representação anteriores ao século XVIII". No original: "El tiempo de la historiografía literaria romántica, en la que aún estamos parcialmente presos. En ella, desde el siglo xix, el tiempo es entendido como evolución, contradicción, superación y progreso, no habiendo en él nada parecido a un principio absoluto que se repite. En la consideración de las artes, ese tiempo implica categorías románticas y expresivas, como 'subjetividad psicológica' y 'autoría', y otras instancias, como el 'artista', invención del siglo xviii, la mercancía 'originalidad, la competición en el mercado de bienes culturales, la crítica literaria y de las artes, etc., que por definición niegan o anulan la retórica y la teología política de las prácticas de representación anteriores al siglo XVIII" ("Notas" 117).

9o original: "Es, en ese sentido, lo que ocurre con la historia literaria brasileña, que propone a los autores del xvii y aun de la primera mitad del xviii como 'manifestaciones, parciales, de lo que deberá venir después como plenitud de lo 'nacional, como si los autores seiscentistas fuesen románticos o prerrománticos, doscientos años antes del romanticismo. El presupuesto iluminista acostumbra a acusar invariablemente al pasado de no haber sido lo que la crítica presupone que debiera haber sido para que se realizara satisfactoriamente la evolución temporal como progreso".

10Eis o que escrevia José de Alencar em "Benção paterna", título do seu prefácio ao romance Sonhos de ouro, de 1872, respondendo aos críticos avessos ao uso de estrangeirismos na língua portuguesa: "Em vez de andarem assim a tasquinhar com dente de traça nos folhetinistas do romance, da comédia, ou do jornal, por cansa dos neologismos de palavra e de frase, que vão introduzindo os novos costumes: deviam os críticos darem-se a outro mister mais útil, e era o de joeirar o trigo do joio, censurando o mau, como seja o arremedo grosseiro, mas aplaudindo a aclimatação da flor mimosa, embora planta exótica, trazida de remota plaga. Sobretudo compreendam os críticos a missão dos poetas, escritores e artistas, nesse período especial e ambíguo da formação de uma nacionalidade. [...] E de quanta valia não é o modesto serviço de desbastar o idioma, novo das impurezas que lhe ficaram na refusão do idioma velho com outras línguas? Ele prepara a matéria, bronze ou mármore, para os grandes escultores da palavra que erigem os monumentos literários da pátria" (XVI).

11Citação a partir do manuscrito de Mário de Andrade, reproduzido digitalmente e transcrito por Aline Novais de Almeida em sua dissertação de mestrado.

12No original: "debajo de su textura 'occidental, subyacen formas de conciencia y voces nativas".

13No original: "Le monde colonisé est un monde coupé en deux"

14No original: "dos conciencias que desde su primer encuentro se repelen por la materia lingüística en que se formalizan, lo que presagia la extensión de un campo de enfrenta-mientos mucho más profundos y dramáticos, pero también la complejidad de densos y confusos procesos de imbricación transcultural".

Cómo citar este artículo (MLA): Siega, Paula Regina. "Literatura colonial como espaço de disjunção: a historiografia literária brasileira no contexto latino-americano". Literatura: teoría, historia, crítica, vol. 21, núm. 2, 2019, págs. 201-227.

Sobre a autora Doutora em Línguas, Culturas e Sociedades pela Universidade de Veneza em 2011. De 2012 a 2014 foi pesquisadora bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico/Fundação de Amparo à Pesquisa do Espírito (CNPq/Fapes) na Universidade Federal do Espírito Santo, onde atua como professora colaboradora do Programa de Pós-graduação em Letras. Desde 2014, é professora visitante na Universidade Estadual de Santa Cruz, Bahia, onde é professora permanente do Programa de Pós-graduação em Letras. Atualmente, desenvolve projeto de pesquisa na área de literatura brasileira, que investiga o processo da ficcionalização do antropófago operada pelos textos coloniais. É líder do grupo de pesquisa "Cânone: dissidências e reexistências", que tem entre seus objetivos a proposição de leituras críticas voltadas à investigação da complexidade colonial, marcada por disjunções, ambiguidades e fraturas.

Recebido: 30 de Novembro de 2018; Aceito: 08 de Fevereiro de 2019

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