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Literatura: Teoría, Historia, Crítica

Print version ISSN 0123-5931

Lit. teor. hist. crit. vol.22 no.2 Bogotá July/Dec. 2020

https://doi.org/10.15446/lthc.v22n2.86091 

Artículos

A poética de Losango cáqui, de Mário de Andrade: temporalidade e experimentação no modernismo brasileiro

La poética de Losango cáqui, de Mario de Andrade: temporalidad y experimentación en el modernismo brasileño

The Poetics of Losango Cáqui, by Mário de Andrade: Temporality and Experimentarion in Brazilian Modernism

Leandro Pasini1 

1 Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos, Brasil leandro.pasini@unifesp.br


Resumo

Este texto pretende remontar à poética de Losango cáqui de Mário de Andrade, livro de poemas concebido e escrito no final de 1922 e publicado somente no início de 1926, em versão parcialmente modificada. Defende-se aqui que a falta de sincronia editorial entre escrita e publicação deformou a posição do livro na temporalidade da poesia modernista brasileira. A partir de sua fortuna crítica, busca-se entender a lógica temporal interna ao próprio livro, composto em um momento em que Mário de Andrade e seu grupo absorviam de modo acelerado as vanguardas europeias, com um ímpeto de experimentação que marca sobretudo os anos de 1921-1924 do modernismo brasileiro. Argumenta-se, por fim, que Losango cáqui adquiriu originalidade graças a uma refração local do modernismo internacional, alcançada por meio de uma reflexão poética afinada com o seu contexto.

Palavras-chave: Losango cáqui; Mário de Andrade; modernismo brasileiro; poesia modernista

Resumen

Este texto pretende volver a la poética de Losango cáqui, de Mário de Andrade, un libro de poemas concebido y escrito a fines de 1922 y publicado solo a principios de 1926, en una versión parcialmente modificada. Aquí se argumenta que la falta de sincronía editorial, entre la escritura y la publicación, deformó la posición del libro en la temporalidad de la poesía modernista brasileña. A partir de su fortuna crítica, se busca entender la lógica temporal interna del libro, escrito en un momento en que Mário de Andrade y su grupo absorbieron aceleradamente las vanguardias europeas con un ímpetu de experimentación, el cual marca sobre todo los años de 1921-1924 del modernismo brasileño. Finalmente, se argumenta que Losango cáqui adquirió originalidad gracias a una refracción local del modernismo internacional, lograda a través de una reflexión poética en sintonía con su contexto.

Palabras clave: Losango cáqui; Mário de Andrade; modernismo brasileño; poesía modernista

Abstract

This article aims at piecing together the poetics of Mario de Andrade's Losango caqui, a book of poems conceived and written at the end of 1922 and only published in the beginning of 1926, in a partly revised version. Here I argue that the lack of editorial synchrony between the writing and the publishing of Losango caqui deformed its position in the temporality of Brazilian modernist poetry. Based on its critical heritage, I try to understand the temporal logic of the book, which was created in a moment when Mario de Andrade and his group were hastily absorbing the international avant-garde, with the experimental drive that characterizes the period from 1921 to 1924 of Brazilian modernism. Finally, I point out that Losango caqui's originality is due to its local refraction of the international modernism, which was achieved by a poetics connected to its own context.

Keywords: Losango cáqui; Mário de Andrade; brazilian modernism; modernist poetry

Tenho todo um Mappa-mundi de estados-de-alma

Mario de Andrade, Losango cáqui XXIII

Sou brasileiro ou alemão?

Mario de Andrade, Losango cáqui XXIX

A posição do livro na obra e na poética de Mário

DENTRE OS LIVROS DE POEMAS de Mário de Andrade, Losango cáqui (1926) é dos que menos tem recebido atenção da crítica. Esse fenómeno não se restringe aos leitores e críticos de sua poesia, pois o próprio Mário, ao reunir a sua obra poética no livro Poesias, em 1941, mutilou significativamente Losango cáqui, reproduzindo somente dezenove de seus quarenta e cinco poemas, enquanto manteve onze dos vinte e dois de Pauliceia desvairada (1922), e deixou quase completos Clã do jabuti (1927) e Remate de Males (1930), além de acrescentar os livros A costela do grã Cão e Livro azul.1 A relativa resistência do próprio poeta em relação ao seu livro de 1926 - a qual procuraremos entender em momento posterior deste ensaio - foi reproduzida por sua fortuna crítica. Essa conta com basicamente dois momentos de destaque: os textos de recepção, muitas vezes polémicos, dos próprios modernistas quando o livro foi finalmente publicado (pois sua escrita data de 1922), e teses e dissertações escritas a partir do começo dos anos 2000, por vezes com foco no expressionismo e na relação da obra de Mário de Andrade com a arte alemã.2

Este texto retoma a poética de Losango cáqui incorporando criticamente a própria lógica que gerou a sua pouca fortuna crítica e, ao entendê-la, remonta a poética do livro, em que entram, por um lado, um momento de absorção acelerada das vanguardas europeias - sobretudo francesa e alemã - com um ímpeto de experimentação que marca especificamente os anos de 1921-1924 do modernismo brasileiro; por outro, a falta de sincronia editorial entre a escrita e a publicação, o que deformou a posição do livro na temporalidade da poesia modernista brasileira, principalmente no interior do grupo paulista.

Porém, antes de entrarmos na questão editorial, que determina a posição histórico-literária do livro, podemos apreendê-lo pela sua própria organização. Com poemas numerados em algarismos romanos, alguns com títulos adicionais, mas a maioria apenas numerada, Losango cáqui se constrói tematicamente em torno de dois eixos: o amor e os exercícios militares.3 É desses últimos que decorrem o título do livro - o losango da cor do uniforme militar na roupa de arlequim do poeta de Pauliceia desvairada, e que é tematizado no poema xliii: "Afinal, / Este mês de exercícios militares: / Losango cáqui em minha vida. // ... arlequinal..." (v. 30-33) - e a capa, na qual aparece um soldado sozinho, sentado, fumando em uma postura introspectiva. O título inteiro, no entanto, conta com um subtítulo: "ou afetos militares de mistura com os porquês de eu saber alemão". Esse subtítulo diz muitas coisas. Em primeiro lugar, um romance ocorrido ao longo do mês de exercícios militares. Sabemos pelos poemas que é uma mulher loira ou ruiva, de "cabelos fogaréu", que pode ser aproximada da personagem Fraulein, de Amar, verbo intransitivo, romance publicado em 1927. Em segundo lugar, o estudo dessa língua pouco corrente entre os modernistas de então - o alemão - pode estar relacionado à mulher (professora? falante?) ou à atividade de estudo que Mário levava a cabo nesses anos da cultura do expressionismo alemão. Do expressionismo, como trataremos adiante, parece vir a sugestão da temática militar. Além disso, das vanguardas europeias de que o expressionismo faz parte e que estavam em processo de aclimatação nesses primeiros anos de modernismo organizado no Brasil, o livro traz igualmente elementos experimentais relacionados com a vida cotidiana, a língua coloquial, a ambientação urbana, as analogias livres e o interesse pelo aspecto visual do poema.

No ano de 1922, em que Pauliceia desvairada é publicada, Mário escreve, além da primeira versão de Losango cáqui, um livro de poética: A escrava que não é Isaura, publicado somente em 1925. Cumpre notar que esse livro é parte de um esforço coletivo de aclimatação da arte moderna levado a cabo pelo grupo paulista reunido em torno da revista Klaxon (1922-1923), pois, paralelo ao livro de poética de Mário são publicados, em 1924, Natalika, de Guilherme de Almeida, e Domingo dos séculos, de Rubens Borba de Moraes, ambos buscando a um tempo divulgar e justificar a arte moderna, bem como legitimar a atuação do grupo de que faziam parte. Em Natalika (nome de uma estátua indiana de mármore), Guilherme de Almeida defende a separação entre natureza e arte, com vantagem para a perenidade desta em relação ao efémero da natureza. O propósito, enunciado apenas na parte final do livro (que pretende ser uma reflexão filosófica sobre a arte), é afirmar a artificialidade da arte e do artista para desembocar na arte moderna: cerebral e mesmo superior à natureza. Essa conclusão é apoiada em dois nomes de vanguarda europeia, como se vé na seguinte citação:

Já se tinha visto, copiado, interpretado, aperfeiçoado a mais não poder a natureza: agora era necessário contrariá-la, negá-la mesmo se preciso fosse. E veio a arte nova. Veio essa arte estranha, inquieta, infantil, inicial, ingénua, confusa, deformada, mórbida, incompreendida, negada; essa arte que parece uma pobre troça, mas que é profundamente dolorosa na sua aparência insignificante de blague doentia. Um poema de Blaise Cendrars, um quadro de Picasso são pequenas negações cerebrais da natureza. (79)

Não me deterei sobre a passagem, cuja análise da enumeração dos adjetivos atribuídos à arte moderna, da contraposição entre natureza e arte, do tom sapiencial que rege a maior parte do livro demandaria outro estudo, diferente deste. Aqui quero seguir o processo de racionalização da arte moderna em São Paulo entre os anos de 1921-1924, e que tem no livro de Guilherme de Almeida um momento de autoconsciéncia da autonomia da arte moderna e de suas conquistas técnicas. Contudo, o pensamento estético do livro confia tanto na universalidade conceitual da arte que acaba distanciando a arte moderna de suas manifestações concretas, antes fiando-se em um ideal tão belo e distante quanto a estatueta indiana que dá título ao livro.

Rubens Borba de Moraes opta por um estilo radicalmente diverso do que Guilherme de Almeida. A irreveréncia dá o tom da escrita e está em sintonia com a iconoclastia alegre dos tempos de Klaxon, o que se explicita na própria ideia de que "a arte moderna, canta a alegria de viver, não acredita em 'géneros', mistura a água com o vinho" (68). Essa ideia da arte moderna como uma "arte de domingo" é apresentada, no entanto, com uma leveza de que não está ausente a autoironia: "Nossa época é o domingo dos séculos. Toda gente se diverte aos domingos, menos eu que me aborreço" (26). A despeito do tom, Rubens Borba demonstra possuir uma concepção segura de modernismo, quando assume que ele é um fato "como os aeroplanos, o bolchevismo, o fox-trot, o jazz-band" (24). A modernidade era uma transformação radical do mundo, que incluía a tecnologia, os transportes, a organização política, os costumes e a arte. Resumindo os seus argumentos quanto à poética modernista, Rubens Borba remonta, por um lado, a Henri Bergson (além de Jean Epstein) para se apoiar nas noções de intuição e subconsciente, por outro, em Rimbaud para reafirmar a "poesia do subconsciente" e a simultaneidade das sensações e das visões. Contudo, é interessante notar como em Domingo dos séculos a contribuição brasileira já figura como parte da modernidade internacional, não apenas em uma passagem em que os exemplos são em sequéncia direta Marcel Proust, Francis Picabia, Mário de Andrade e Luís Aranha (72), mas principalmente quando, em um ousado lance ideológico, confere "cor local" à arte moderna ao chamar os seus protagonistas (internacionais) de "Bandeirantes do pensamento" (26). O que poderia ser mais uma tirada espirituosa, entre tantas do livro, parece se tornar séria quando lemos que Rimbaud, "como um bandeirante paulista, sentia a ânsia pelas paisagens desconhecidas e, porque tinha na alma de iluminado, um verdadeiro inferno, deixou dois volumes: Illuminations e Une saison en enfer" (45).

A despeito da natureza questionável dessa aproximação, o que se vé é um esforço de conciliar um elemento local (paulista, no caso) com o alcance transnacional do modernismo artístico. É justamente nesse entrecruzamento, segundo a hipótese de leitura deste ensaio, que se encontram A escrava que não é Isaura e Losango cáqui, de Mário de Andrade. Estudo de maior fôlego ou, como diz o subtítulo, um "discurso sobre algumas tendéncias da poesia modernista", A escrava... oferece farta citação da produção modernista internacional, incluindo, entre outros, Vicente Huidobro, Apollinaire, poemas dadaístas de Tristan Tzara, Luis Aragon e Philippe Soupault, Amy Lowell, Gottfried Benn, Pallazeschi e Maiakóvski. Além disso, entrelaçava a essas citações a produção do modernismo brasileiro, como poemas de Menotti del Picchia, Guilherme de Almeida, Ronald de Carvalho, Luís Aranha, Tácito de Almeida, trazendo também poemas em francés de Sérgio Milliet e Manuel Bandeira. Sua exposição teórica parte igualmente de Rimbaud e de postulados da revista francesa L'esprit nouveau,4 de onde tira a fórmula de Paul Dermée "Lirismo + Arte = Poesia", para elaborar a sua própria versão da relação entre "lirismo", "moto lírico", "subconsciente", "associação de imagens", "palavra solta", e as necessidades de comunicação e ação, que entrariam como elementos conscientes na composição de um "poema", o qual se diferenciaria, assim, da matéria-prima do "lirismo", que, no entanto é o seu elemento primordial. Nesse sentido, Mário de Andrade propõe a seguinte fórmula: "Lirismo puro + Crítica + Palavra = Poesia" (A escrava 205). Fazendo abstração de boa parte das propostas e formulações de Mário em A escrava...., gostaria de destacar dois momentos que conectam o livro de poética com Losango cáqui: o lirismo e a simultaneidade.

É sobretudo a partir do que Mário chama de "lirismo puro" que ele vai desenvolver o "diário militar" do ano de 1922, em que visa trazer suas cogitações "ao asfalto cotidiano da poesia de 1922" (A escrava 207), para lembrar uma expressão que o poeta utiliza em outro contexto em A escrava... Nesse sentido, na primeira versão de Losango cáqui (que foi reelaborada até a publicação final), Mário tinha em mente menos o poema como resultado final e mais um experimento lírico, seguindo à sua maneira a diretriz poética assim descrita: "na poesia modernista o lirismo puro é grafado com o mínimo de desenvolvimento que sobre ele possa praticar a inteligência" (A escrava 205). Assim, dois dos elementos mais originais de Losango cáqui certamente nascem desse impulso experimental inicial: a absorção da vida cotidiana e a linguagem coloquial, que grafavam as notações líricas depois organizadas como livro.

O "moto lírico", como o chama Mário de Andrade, vincula-se à ideia de simultaneidade, que é a ideia-força de A escrava... Assim, as descobertas da poesia do subconsciente e as transformações materiais da modernidade são fenómenos articulados pela ideia de simultaneidade, o que leva Mário a concluir: "Estou convencido que a simultaneidade será uma das maiores sinão a maior conquista da poesia modernizante" (A escrava 273). Dada a geopolítica cultural que configura a dinâmica dos diversos modernismos locais e que constrange particularmente os países periféricos, era natural que o tema da simultaneidade fosse pensado igualmente no interior da dialética entre o local e o cosmopolita. Mário, que depois fará do nacionalismo cultural praticamente uma missão (sem nunca ser patriota), nesse momento formula essa relação como o resultado da heterogeneidade de um mundo em processo de unificação e de que o modernismo é a expressão artística:

Sou brasileiro. Mas além de ser brasileiro sou um ser vivo comovido a que o telégrafo comunica a nênia dos povos ensanguentados, a canalhice lancinante de todos os homens e o pean dos que avançam na glória das ciências, das artes e das guerras. Sou brasileiro. Prova? Poderia viver na Alemanha ou na Áustria. Mas vivo remendadamente no Brasil, coroado com os espinhos do ridículo, do cabotinismo, da ignorância, da loucura, da burrice para que esta Piquiri venha a compreender um dia que o telégrafo, o vapor, o telefone, o Fox-Jornal existem e que A SIMULTANEIDADE EXISTE.5 (A escrava 266)

Losango cáqui é justamente o conjunto de poemas, ou de "anotações líricas", em que a heterogeneidade dos elementos local e cosmopolita da poesia modernista se configuram de modo específico e original. Isso marcaria uma etapa particular no desenvolvimento da poesia modernista brasileira entre 1921-1924; porém, ao ser publicado em momento posterior, quando o ideal já era o poema construído e o nacionalismo literário havia se afirmado como a principal plataforma do movimento, Losango cáqui demanda uma historiografia não linear do modernismo brasileiro para que sua poética possa ser reconstituída, o que passa necessariamente pelas condições de publicação do grupo modernista paulista.

Questão editorial

Losango cáqui é publicado em 1926 pela Editora A. Tisi, na verdade, Antonio Tisi, dono da Livraria Italiana, localizada no Largo de São Bento, em São Paulo. Pela mesma editora Mário ainda publica os contos de Primeiro andar (1926) e o romance Amar, verbo intransitivo (1927). No entanto, essa relação com Antonio Tisi foi pontual, pois, ao longo da década de 1920, Mário de Andrade custeou a própria obra, o que está documentado em sua correspondência, como nesta passagem de 4 de outubro de 1925 a Anita Malfatti: "o dinheiro que posso economizar é pra pagar a edição do Losango Caqui" (Zilberman 117). A posição de Mário reflete a condição generalizada do escritor, sobretudo dos poetas, ao longo da década em questão. Zilberman assim descreve a situação: "Nas vésperas da Semana de Arte Moderna, o Brasil apresenta um quadro editorial bastante medíocre: poucas as editoras, reduzidas as possibilidades de remuneração do trabalho artístico" (115).6 Os efeitos desse circuito editorial incipiente são ainda mais drásticos quando se trata de movimentos de inovação estética, cuja expectativa de recepção e absorção pelo público é mínima. Por conta disso, os grupos modernistas em geral (ou de vanguarda, não estou trabalhando com a distinção entre os dois termos) buscaram uma base editorial para a sua existência concreta: os futuristas italianos tinham a editora Poesia; os franceses, a Au Sans Pareil; os ingleses, a The Egoist Press; os estaduninenses, a Alfred Knopf; os expressionistas alemães, a Kurt Wolff e a Rowohlt; os cubofuturistas russos investiram pesadamente em edições pequenas e muitas vezes artesanais; os argentinos, o Editorial Proa; os modernistas árabes sediados em Beirute dispunham da Shir, editora homónima à revista do grupo; os antilhanos e africanos francófonos (sobretudo senegaleses) da Négritude fundaram em Paris a editora Présence Africaine, igualmente homônima à sua revista, entre outros exemplos possíveis.

No modernismo brasileiro, a relação entre os grupos locais e essa base editorial foi diferente, e definiu em grande medida a imagem que se consolidou de certos grupos, bem como a sua temporalidade histórico-literária. Em alguns casos, a exemplo de Belo Horizonte, essa circunstância adiou a publicação das obras do grupo, como as de Carlos Drummond de Andrade, João Alphonsus e Emílio Moura, que só publicam a partir de 1930, separando toda a sua produção da década de 1920 da esfera editorial do livro. A opção algumas vezes era buscar editoras pouco simpáticas às plataformas artísticas das obras, conforme se verifica com Manuel Bandeira, que publica Poesias, em 1924, pela Tipografia da Revista de Língua Portuguesa, de gosto mais parnasiano, ou com a edição fracassada de Pauliceia desvairada pela editora de Monteiro Lobato, que a princípio acenou positivamente e, em seguida, declinou a publicação da obra.

Alguns grupos modernistas tiveram editora, como o gaúcho, em que a Editora da Revista do Globo, dirigida por Mansueto Bernardi, tinha simpatia pelo movimento e publicava os seus poetas sistematicamente. Além dele, o grupo mineiro de Cataguases teve o Editorial Verde, e o grupo Verde-Amarelo, dissidente de Klaxon, contou com a editora Hélios, que publicou Menotti del Picchia, Cassiano Ricardo e Plínio Salgado, entre outros. Com isso, o percurso poético de Augusto Meyer, por exemplo, tem um acompanhamento editorial muito mais lógico do que o de Mário de Andrade, bem como o próprio Cassiano Ricardo, que publica seguidamente pela Hélios Vamos caçar papagaios (1926), Borrões de verde e amarelo (1927) e Martim Cererê (1928), além da plataforma ideológica do grupo, O Curupira e o Carão, lançada pela mesma Hélios em 1927. Já os membros de Klaxon, embora tivessem muito dinheiro, entre eles estavam Paulo Prado e Oswald de Andrade, o qual custou a publicação de Pau Brasil (1925) pela francesa Au Sans Pareil, não tinham uma editora comprometida com o movimento. Mesmo a revista Klaxon era cotizada. Assim, várias obras de membros do grupo não foram publicadas em seu momento, como Cocktails, de Luís Aranha, ou O Túnel, de Tácito de Almeida (que à época assinava Carlos Alberto de Araújo), que só vieram a público décadas mais tarde,7 e as obras de Mário de Andrade, Losango cáqui e A escrava que não é Isaura, que estamos acompanhando.8

Por essa razão, a temporalidade de um livro, do ponto de vista público e material, depende de um fator externo à própria escrita da obra, isto é, de uma editora. Dessa perspectiva, o tempo qualitativo da história literária - em que uma obra ocupa o espaço público, recebe atenção da crítica e potencialmente participa como estímulo à criação de novas obras - é um tempo atrelado, em grande medida, à história material da literatura. Isso foi determinante na recepção crítica de Losango cáqui, como veremos a seguir.

Temporalidade no interior do movimento modernista

A questão editorial levava então a uma falta de sincronia entre o momento da escrita do livro e o seu momento de publicação. Muita coisa aconteceu no modernismo brasileiro entre 1922 e 1926, dentre outras, os programas e manifestos do nacionalismo literário (Pau-Brasil, Verde-Amarelismo, Anta) e a busca de uma obra literária que fosse, nesse sentido, constitutiva de um esforço formal consciente de construção de uma literatura nacional. O próprio Mário já havia dado esse passo em 1924 com a publicação do longo poema "Noturno de Belo Horizonte" na revista Estética e o fará como programa explícito em Clã do jabuti (1927), como o próprio título indica.

Quando Losango cáqui é publicado, a questão principal que ele levanta em sua recepção crítica é menos a análise de sua proposta estética do que saber se ele é ou não poesia, tema presente na própria "Advertência" em prosa que Mário fez como introdução ao livro. Aí ele diz que raramente teve a "intenção de poema" nos "versos sem títulos" do livro; em seguida, coloca sob suspeita essa "poesia-de-circunstância", pois não teria a "característica de universalidade", que seria um dos "principais aspectos da obra-de-arte" (Poesias completas 133). Mário já tinha em mente sua nova poética, consolidada pelos longos poemas nacionalistas "Carnaval Carioca" e "Noturno de Belo Horizonte", que formam, com os "Dois poemas acreanos", o eixo artisticamente mais ambicioso de Clã do jabuti, pois teriam, pela imersão poeticamente orientada e pela ambição hermenêutica de descoberta do País não oficial, a intenção de poema. Manuel Bandeira, o maior interlocutor de Mário à época, ao receber por carta a nota que a seria a "Advertência", demonstra o mesmo grau de consciência, como responde em carta de 23 de novembro de 1923:

entendo o que queres dizer no prefácio ["Advertência"]. E isso porque li o "Carnaval [Carioca]". Este tem linhas mais monumentais. Acho também que será nos grandes poemas deste gênero que poderás dar toda a tua medida. O resto, ao lado, fica parecendo treino. (Citado em M. A. Moraes 107)

A compreensão demonstrada por Manuel Bandeira, não somente na correspondência com Mário como na resenha do livro publicada na Revista do Brasil 2a fase, de 30 de setembro de 1926, não será a tônica das resenhas de Losango cáqui, sobretudo fora do núcleo modernista mais próximo de Mário.9 Menotti del Picchia, ex-companheiro de Klaxon em 1922 e verde-amarelista em 1926, exemplifica a atitude hostil ao livro em uma resenha reproduzida e respondida por Mário em Terra roxa... e outras terras n. 2. A despeito da intenção polêmica e mesmo injuriosa da resenha de Menotti e da resposta de Mário, a dessincronia entre a escrita e a publicação de Losango cáqui é tematizada por Menotti: "O Losango cáqui justificava-se há três anos. Nesse tempo, tudo servia. [...] Hoje é coisa ridícula" (4). O tom insultuoso não impede que Menotti capte dois procedimentos centrais do livro: o caráter imprevisto das analogias livres, que para o resenhista fariam do poeta um pejorativo "cigano mental", e o psicologismo poético, que busca captar o lirismo em sua nascente como algo ainda fragmentário, anterior ao trabalho da consciência, o que Menotti entende como enganação poética ou, em suas palavras: "As larvas passam-se por corpos" (4).

O entendimento de que os procedimentos do livro sofreram a ação do tempo no interior do desenvolvimento poético do modernismo brasileiro reaparece na resenha de Sérgio Milliet, publicado no número três de Terra roxa... e outras terras, ao enfatizar a dificuldade que isso trazia para a leitura dos poemas, "porque obriga a gente a se colocar em duas épocas diferentes. Isto contínua e simultaneamente Mário escreveu o livro em 1922 e corrigiu ele em 1925. Abrasileirou-o. E de tal maneira que o tornou quase disforme" (3). Essa disformidade é desdobrada pelo crítico, que afirma: "Para o passado, isto é, 1922, é excelente. Livro sem defeito para o modernista de então", pois ele teria as qualidades dos processos poéticos do momento: "Livro sincero, sintético, sentimental, espirituoso" (3). Entretanto, Milliet descreve o esforço necessário para esse entendimento e o resultado pouco favorável ao livro: "Mas é quase impossível a gente se transportar assim, sem um recolhimento bastante prolongado, para uma época já bastante remota. Insensivelmente volta-se agora para o presente. E agora, acho esses poemas do Losango Cáqui desiguais. E até meio passadistas" (3). Caberia então a pergunta: passadistas em relação a qual presente? O próprio rese-nhista parece responder à questão quando elogia e toma como referência "Losango cáqui XXXI": "o delicioso poema 'Cabo Machado'. Este sim. Este é modelo para nosso brasileirismo estético" (3).

Se o nacionalismo poético é o paradigma de Sérgio Milliet em 1926, Martins de Almeida, a principal figura crítica do grupo belo-horizontino, prefere centrar a sua análise de Losango cáqui, presente no número cinco de Terra roxa... e outras terras, na questão técnica, realçando o elemento analítico do verso, a prática da simultaneidade poética e sua dimensão "cinematográfica", concluindo que: "A frase poética tem que sofrer interiormente toda sorte de elipses abreviações sínteses, tem de se fragmentar para exprimir o movimento particular do seu espírito" (4). Trata-se de uma análise mais próxima da estrutura formal do livro, o que vai ao encontro da resenha de Manuel Bandeira já referida anteriormente, a qual unifica a leitura técnica e o critério de brasilidade poética em uma fina apreensão da arquitetura do livro. Bandeira enuncia os eixos temáticos do amor e do reservista na exposição cromática da obra: "A cor complementar do cáqui dos exercícios militares foi no caso o ruivo duns cabelos fogaréu" (179). Em torno desse núcleo temático se devolve a técnica do "automatismo psíquico de imagens declanchado por uma palavra possivelmente denunciadora de complexo" (180). O automatismo está articulado à "espontaneidade lírica", que responde em grande medida à opção pela língua coloquial e ao ambiente cotidiano dos poemas. Aí Mário põe em cena o que Bandeira chama: "Psicopoesia experimental. Poesia em estado nascente" (180).

Essa compreensão de Manuel Bandeira se deve, como veremos em seguida, à familiaridade que ele teve com o livro desde a sua primeira versão, que Mário lhe envia em 15 de novembro de 1923. Isso, no entanto, é um frágil contraponto diante da temporalidade problemática de Losango cáqui, pois o quadro artístico-cultural imediato de sua publicação é o da consolidação poética do nacionalismo cultural brasileiro, enquanto o quadro artístico-cultural de sua escrita é o da experimentação poética das vanguardas internacionais e de sua possível absorção no contexto local. Caberia aqui, então, para abordar devidamente a poética do livro, pensá-lo tal qual concebido e realizado entre fins de 1922 e 1923, bem como alguns desdobramentos poéticos de sua edição até vir a público no início de 1926.

Poética sincrônica ao tempo de sua escrita

O momento do modernismo em São Paulo que vai de 1921 a 1923 é o de leituras constantes e entusiasmadas da produção artística das vanguardas internacionais, sobretudo a francesa, mas não só. Desse contexto fazem parte: Pauliceia desvairada; os nove números da revista Klaxon, com poemas de Sérgio Milliet, Tácito de Almeida, Luís Aranha (lembrando que um dos seus principais poemas, "Drogaria de Éter e de Sombra", sairia no número quatro da revista carioca Estética, que não foi publicada); os livros de codificação da poesia modernista já citados - Natalika, de Guilherme de Almeida, Domingo dos séculos, de Rubens Borba de Morais, e A escrava que não é Isaura, de Mário de Andrade -; além de Losango cáqui. Tratava-se então de um momento de acelerada leitura e adaptação de autores europeus, sobretudo de Guillaume Apollinaire, Blaise Cendrars e do pensamento estético da revista francesa L'Esprit nouveau (1920-1925), a que se soma, no caso de Losango cáqui, uma leitura pessoal do expressionismo alemão.

É um momento essencialmente de absorção e de experimentações que levou Mário a escrever Losango cáqui, composto, segundo ele, de "Sensações, ideias, alucinações, brincadeiras, liricamente anotadas", ou seja, "anotações líricas de momentos de vida e movimentos subconscientes" as quais, ainda segundo o poeta, "consagram e perpetuam essa inquietação gostosa de procurar" (Poesias completas 10). Desse modo, Mário trabalha com a "notação lírica", o estado de poesia, o circunstancial tal qual refratado pela sensibilidade, e não o poema pensado, polido, "finalizado", uma espécie de sequência radiográfica da sensibilidade, e não um livro de poemas no sentido tradicional. Esse procedimento já é observado nas duas primeiras estrofes do primeiro poema do livro ("Losango cáqui 1"), que, após enunciar na primeira estrofe o que será um dos refrãos do livro: "Meu coração estrala. / Esse lugar-comum inesperado: Amor" (123), repõe na estrofe seguinte esse tipo de espasmo amoroso em uma situação cotidiana (o poeta está no bonde), transfigurada por uma série de associações livres composta de imagens imprevistas:

Na trajetória rápida do bonde...

De Sant'Ana à cidade.

Da Terra à Lua

Julio Verne

Atravessei o núcleo de um cometa?

Me sinto vestido de luzes estranhas

E da inquietação fulgurante da felicidade. (123)

O caminho do bonde, captado pelo estado consciente do eu lírico que se encaminha do bairro onde ocorrem os exercícios militares (Santana) até o centro da cidade, também "estrala" e, subitamente, o poema sai de órbita, indo em direção ao mundo da lua, o que leva à referência livresca de Julio Verne e sua conotação de ficção científica, passando-se então da lua ao núcleo de um cometa e sua maior aceleração. Até aí, estamos diante da sensação do "estralo" e suas analogias de movimento (relacionadas ao bonde). Nos dois versos seguintes, a nova órbita da estrofe corresponde à sensação amorosa: as luzes estranhas (vinculadas a cometas e ao espaço, talvez ao céu estrelado) e o brilho, agora interiorizado, mas igualmente em movimento ("inquietação fulgurante"), da felicidade.

Mário explica parte dessa poética experimental em A escrava..., seguindo a linha psicologista que afirma que o movimento lírico, ou moto lírico, nasce no subconsciente, no eu profundo, e se manifesta de modo desordenado - o que ele chama de "lirismo". A poesia seria a modelação consciente e paciente desse estado de coisas, afiando e dando forma mais adequada à expressão do "moto lírico". A poesia modernista, prossegue Mário, havia criado técnicas novas para a expressão desse lirismo. Seriam elas: o verso livre, a rima livre e a vitória do dicionário (o valor poético da palavra solta, e não na frase sintática). Também acrescenta a substituição da ordem intelectual pela ordem subconsciente, rapidez e síntese, polifonismo (A escrava 226). Em Losango cáqui, como vimos na estrofe citada, estão presentes a associação de ideias (ordem subconsciente) e a captação do fato bruto, do imediato, incluindo a linguagem da imediatidade - a língua coloquial, o que conecta mais diretamente o livro com o modernismo brasileiro que se lhe seguiu.

Essa aproximação da língua falada recebeu o comentário crítico positivo de Manuel Bandeira em carta de 29 de janeiro de 1926, logo após o recebimento do livro publicado: "O abrasileiramento todo está bom" (citado em M. A. Moraes 271). Isso indica que, se não houve uma alteração radical da poética que está no cerne do "diário militar", houve uma série de modificações no livro que estão relatadas na correspondência de Mário e Bandeira. Aí lemos o embrião da ideia em carta de 6 de junho de 1922, em que Mário fala sobre o projeto de "livro que não terá nome. As poesias também não terão nome. Mais ou menos: cinestesias objetivadas" (citado em M. A. Moraes 64). Essa primeira ideia aparece realizada em carta de outubro do mesmo ano: "Fiz uma espécie de diário em verso do meu tempo de serviço militar" (citado em M. A. Moraes 72). O poeta paulista volta a referir-se ao livro em dezembro de 1922 e em agosto de 1923, em que envia uma versão um pouco diferente do poema "Losango cáqui XVII", até enviar o livro completo para o seu amigo em 15 de novembro de 1923.

Bandeira dedica duas cartas ao livro, com comentários críticos e sugestões de modificações de versos, em 23 de novembro e 11 de dezembro de 1923. Mário é bastante receptivo às sugestões e responde em carta de dezembro de 1923: "Recebi tuas duas cartas sobre Losango cáqui. Quase todas as tuas observações foram aceitas imediatamente" (citado em M. A. Moraes 111). Ao longo do ano seguinte, Mário passa a enviar novos poemas, como "Tabatinguera" e "A escrivaninha", posteriormente incorporados a Losango cáqui e que comporiam uma parte (não realizada) chamada "Ciclo do Flamingo", referência ao poema "Flamingo", de estética diferente da inicial do livro.

Esses poemas posteriormente incorporados ao plano inicial do livro ("II. Máquina de Escrever", "X. Tabatingúera", "XXI. A Menina e a Cantiga", "XXIV. A Escrivaninha", "XXVII. A Menina e a Cabra", "XXVIII. Flamingo", "XXX. Jorobabel", "XLI. Toada sem Álcool", "XLIV. Rondó das Tardanças" e "XLV. Toada da Esquina") apontam para concepções de poesia diferentes de Mário e Bandeira nas cartas trocadas entre 1924 e 1925. Além das reiterações de ambos os lados da necessidade e da dificuldade de publicar o livro, há questões de poéticas que são debatidas. Mário se distancia do que chamou de poesia do "lirismo" ao escrever a "Advertência" ao livro, pontuando em carta de 29 de dezembro de 1924: "A sinceridade sem vergonha que o modernismo às vezes usou é um erro. Daí aquela minha dúvida expressa no prefácio do Losango cáqui, se temos direito de chamar poesia aos nossos movimentos líricos" (citado em M. A. Moraes 170), o que leva Mário a acrescentar poemas ao livro, que se torna mais heterogêneo, embora não comprometa a sua unidade. Bandeira, ao contrário, defendia o lirismo como elemento central e definidor do poema, como quando comenta o livro Kodak, de Blaise Candrars, em carta de 16 de abril de 1925, e elogia a "reportagem lírica", o "lirismo puro" e conclui: "O seu Losango cáqui tem isso também.

Não é a maior delícia do lirismo?" (citado em M. A. Moraes 198). No mesmo sentido, Bandeira sente a discrepância presente na edição de 1926: "O livro como o li no Rio [em 1923, pois em 1926 o poeta está em Pouso Alto, com Ribeiro Couto] tinha mais unidade" (citado em M. A. Moraes 271).

A forma definitiva de Losango cáqui não é, portanto, uma simples transposição da poética do fim de 1922 para o começo de 1926, pois sofre a ação dos debates e das mudanças das próprias concepções poéticas de Mário. Trata-se, então, de uma poética em processo, cuja experimentação é sensível à história da poesia de que, no Brasil, ela é uma das protagonistas. Considerando esse caráter experimental, vou me ater, a seguir, a dois momentos do núcleo mais orgânico do livro - do diário de exercícios militares - para apreender a natureza simultaneamente local e cosmopolita da poética de Losango cáqui.

Experimentação formal I - aspecto visual do poema

Ao longo do livro, Mário dispõe de uma série de recursos para enfatizar o aspecto visual do poema: recuo de versos, profusão de travessões e reticências, uso sistemático de palavras inteiras em letras maiúsculas com efeito de ênfase, alongamento de onomatopeias, emolduramento de estrofe. Foram justamente esses recursos que chamaram a atenção de Haroldo de Campos, em uma das poucas ressalvas positivas que fez em relação à poesia de Mário de Andrade, notou a concisão de alguns poemas de Losango cáqui:

Só em Losango cáqui, publicado em 1926, em alguns poemas isolados como os de no. XIV ("O Alto") e XXVI, Mário ensaiaria uma concisão paralela àquela praticada exemplar e sistematicamente por Oswald em Pau-Brasil. Mas, mesmo no Losango - a coletânea mais experimental e enxuta de Mário - subsiste a marca renitente do sentimentalismo ("Quando a primeira vez apareci fardado/Duas lágrimas ariscas nos olhos de minha mãe...") e ocorre o soneto demonstrativo (poema XXXIII-bis - "Platão"), o soneto--para-mostrar-que-o-autor-sabia-fazer-sonetos.... (XVII).10

Dessa citação de Haroldo, destaco "Losango cáqui xiv", que traz também o título de "O 'Alto'":

O título "Alto" remete ao comando militar para que os soldados suspendam a marcha, ou seja, ao fim da marcha, que é tematizada como o ponto mais importante do poema. O ritmo da marcha é veiculado pela visualização de uma repetição "um-dois", entrecortada pelas árvores (em caixa alta no poema) que o eu lírico vê ao longo do caminho até ouvir o apito final, expresso pela onomatopeia "prraá", com uma expressão coloquial de satisfação, "cutuba", que significa algo do tipo "que bom!", "legal". Esse aspecto visual de "Losango cáqui XIV" tem como objeto dar visibilidade aos efeitos psicológicos fatigantes do exercício militar, que prendem a subjetividade lírica em uma repetição maçante, provoca o esquecimento da vida pré-exercícios ("Tudo esquecido na cerração") e é alternado com curtos momentos de distração, eles mesmos repetitivos, com a presença de três árvores na marcha poética. Como um modo de estudar a relação entre o elemento poético visual e o ritmo repetitivo, esse poema pode funcionar como um pequeno prisma e ser situado como um critério de aproximação de outros poemas modernistas, de grupos literários relativamente distantes do grupo paulista.

Comparável a "Losango cáqui XIV" é o poema sem título do poeta surrealista japonês Haruyama Yukio (春山行夫) que repete oitenta e quatro vezes o sintagma "白い少女" (Shiroi Shōjo) [Meninas brancas] (citado em Nakano 62-63):

白い少女 白い少女 白い少女 白い少女 白い少女 白い少女

白い少女 白い少女 白い少女 白い少女 白い少女 白い少女

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白い少女 白い少女 白い少女 白い少女 白い少女 白い少女

Haruyama fez parte do grupo surrealista japonês, cuja atuação se adensa a partir de 1927 com as revistas Rosa, magia teoria (薔薇魔術学説 Bara, majutsu, gakusetsu), O fogueiro perfumado (馥郁タル火夫ヨ Fukuikutaru kafuyo) e O sol trajado (衣装の太陽 Isho no taiyo) e se consolida no ano seguinte com a principal revista do movimento, Poesia e poética (詩と詩 論 Shi to shiron, 1928-1931), de que foi editor. O poema reproduzido foi publicado no livro Seçao transversal da planta (植物の断面Shokubutsu no danmen), de 1929, e é parte dos experimentos levados a cabo por Haruyama e Kitasono Katue, que buscavam responder à poesia visual francesa de Um jogo de dados de Mallarmé e dos caligramas de Apollinaire, aproveitando o elemento pictórico da escrita japonesa para criar formas poéticas em que o ritmo visual do poema se sobrepusesse ao conteúdo das palavras (Solt 73-76). Dentre as interpretações de "Meninas brancas", estão as de que se trata de um grupo de meninas brancas, de um encontro para um evento atlético ou de meninas brancas em formação (Solt 75). Seja como for, a proliferação de um mesmo sintagma impõe um ritmo em que movimento e repetição se articulam, criando, em outro contexto cultural modernista, um mesmo padrão formal.

O poema de Haruyama dá ênfase ao caráter regular da repetição, em um bloco unificado, enquanto o poema de Mário inclui na monotonia da marcha um elemento circunstancial e coloquial. Em outro experimento em que a visualidade é um aspecto determinante, Velimir Khlebnikov, em um poema igualmente sem título, traz uma sequência de neologismos:

Зарошь

дебошь

варошь

студошь

жарошь

сухошь

мокошь

темошь. (Khlebnikov 274)

Publicado em 1913 no almanaque dos futuristas russos chamado Missal dos tres (Требник троих Trebnik troikh) - sendo o próprio título um exercício de invenção aliterativa, já que são quatro os participantes do almanaque: os irmãos David e Nikolai Burliuk, Maiakóvski e Khlebnikov -, a sequência de palavras poderia ser transliterada aproximadamente como: Zarosh, debosh, varosh, studosh, jarosh, sukhosh, mokosh, temosh. Embora neologismos, não é improvável que, para o leitor russo algumas delas tenham conotações no léxico comum, como “дебошь”, próxima de “дебош” (a transliteração seria igual, pois o “ь” russo indica uma palatalização na pronúncia que não seria marcada e que continuaria “debosh”), o mesmo que “deboche” em português. Markov, em sua História do futurismo russo, elogia vivamente os poemas de Khlebnikov nesse almanaque, que mais se parecem a fragmentos experimentais: "mesmo algumas das simples enumerações de neologismos impressos um embaixo do outro são poemas bem-sucedidos" (58).11 A verticalização da enumeração dá ao poema um aspecto visual ao repetir sempre o final "oníb", unificando o aspecto sonoro, presentes como rimas finais, e o aspecto visual, tornando o poema apreensível visualmente mesmo para quem não compreenda russo (afinal, ainda para aqueles que entendam a língua, o poema se afigura pouco compreensível, visto que é feito de neologismos). "Zarosh" investe, assim, na incompreensibilidade semântica de um modo ainda mais radical do que "Meninas brancas" e "Losango cáqui XIV". Comparado a esses dois, o poema de Khlebnikov mantém a forma de um bloco visual, como o de Haruyama, e o jogo entre repetição e diferença que se assemelha mais às contraposições "um-dois", "ÁRVORE", de Mário, ou seja, sua imagem é próxima de "Meninas brancas" e sua cadeia sonora está mais perto do ritmo de "Losango cáqui XIV".

Por fim, a possibilidade de dar visibilidade ao ritmo e separá-lo da própria cadeia sonora que foi incialmente sua base poética, aparece também em uma criação de Man Ray que já está na fronteira entre poema e artes visuais (ver figura 1):

Figura 1 "Sem título". Dada: Art and Anti-Art por Hans Richter. Londres, Thames and Hudson, 1970, p. 121. 

Disposto como se fosse um poema, com título, estrofe e versos, essa obra publicada na revista dadaísta 391, número dezessete, de 1924, prescinde de palavras e, no entanto, pelos espaços no interior das grossas linhas pretas, pode-se ler uma reprodução visual do ritmo poético. Richter o lê como um "poema mudo" (120) elaborado no interior das transgressões poéticas dadaístas. Entendido desse modo, Man Ray estaria colocando a visualidade do ritmo acima mesmo da expressão verbal. No limite, tomando a via pictórica de Man Ray, é o caso de perguntarmos se "Losango cáqui XIV" não poderia, ao contato com esses poemas, ser desfamiliarizado a ponto de imaginarmos que alguém que não conhecesse nem a língua portuguesa, nem o alfabeto latino, ainda assim conseguiria captar a visualidade rítmica que o poema traz. Lembrando que a visualidade dos quatro poemas é uma função do ritmo, pois eles não aumentam de modo desproporcional as fontes das palavras nem as decompõem ou separam as letras e tampouco tentam desenhar com os versos. O "poema mudo" de Man Ray, nesse sentido, traz um tipo de grau zero do ritmo que, dialeticamente, se enrijece e se cristaliza em uma imagem sem sons. Retornando a "Losango cáqui XIV", é como se o poema tornasse mais evidente, agora, a sua dupla característica de imagem - de repetições em disposição espacial fixa, imóvel - e de ritmo, em que a cadeia sonora mimetiza a fadiga psicológica da marcha, remetendo, assim, ao movimento, e não à fixidez. Com isso, tanto pela imagem quanto pelo ritmo, "Losango cáqui XIV" permite constelar três poemas de outros circuitos de vanguarda a partir do aprofundamento em sua lógica interna.

Assim, tentou-se aqui colocar as vanguardas internacionais em contato tendo como base algum elemento formal comum. Embora as diferenças sejam tão evidentes que não precisam ser ressaltadas, o que têm em comum é o esforço de pensar tão radicalmente o ritmo (a lógica de repetição e diferença) a ponto de torna-lo palpável, concreto. Essa concretização do ritmo leva dialeticamente à passagem do elemento musical no elemento pictórico, do temporal no espacial. Isso demonstra de modo aproximadamente simultâneo, como grupos modernistas/de vanguarda colocaram em movimento um processo de reflexão e criação poética que a um tempo os aproxima em determinado ponto e os diferencia em suas especificidades, de que a língua é a mais evidente e que, entretanto, mesmo a sua incomunicabilidade pode ser atenuada pela compreensibilidade do procedimento poético. Contudo, se a relação entre ritmo e visualidade mais aproxima do que distingue o modernismo brasileiro de seus pares em outros lugares, a relação com o expressionismo vai ser um fator de autorreflexão local.

Experimentação formal II - Expressionismo e "os porquês de eu saber alemão"

Dentro desse quadro das vanguardas internacionais, Losango cáqui tem uma posição específica explicitada pelo seu subtítulo: "afetos militares de mistura com os porquês de eu saber alemão". A sua relação com o expressionismo alemão, que se infere do subtítulo, é postulada com muito acerto por Paula, em sua tese O expressionismo na biblioteca de Mário de Andrade: da leitura à criação (2007). Ela acompanha, entre outras referências de leitura do poeta paulista, a antologia expressionista Menschheitsdàmmerung (Crepúsculo da humanidade), organizada por Kurt Pinthus, publicada em 1920 e profusamente anotada por Mário. Aí nota a presença de "poetas soldados", que faziam da temática da guerra e do pacifismo um dos centros de gravidade do expressionismo poético (17). Assim, o nosso autodenominado "soldado raso da República" se contrapõe, nesse contexto, ao expressionismo poético, tendo como pano de fundo o momento histórico da i Guerra Mundial e o ideal antibelicoso de pacifismo universal defendido pelos expressionistas alemães.

Mário não apenas dialoga com o expressionismo, ao trazer o tema do poeta-soldado para um ambiente diferente do alemão da primeira guerra, mas também internaliza em "Losango cáqui XVII" o que se poderia entender como a lógica interna de Crepúsculo da humanidade, cuja organização em quatro partes revela de que Kurt Pinthus interpreta o conjunto de mais de duzentos poemas que compõem a antologia. Suas quatro seções são: "Sturz und Schrei (Queda e Grito), "Erweckung des Herzens" (Despertar do Coração), "Aufruf und Empõrung" (Apelo e Indignação) e "Liebe den Menschen" (Ama o Homem).12 Em "Losango cáqui XVII", publicado em livro em uma versão diferente da enviada para Manuel Bandeira em 5 de agosto de 1923 (citado em M. A. Moraes 99-100), há uma espécie de incorporação em miniatura desse processo que vai da queda ao ideal de confraternização universal, lembrando, nesse sentido, que o "crepúsculo" do título de Kurt Pinthus tem não somente o sentido de "ocaso", do momento em que o sol se põe, mas também do momento do nascer do sol, significando, assim, de modo implícito, uma ansiada "alvorada da humanidade". A partir dele, pode-se iniciar um breve percurso para a compreensão de como o livro Losango cáqui opera um tipo de refração brasileira,13 entre militar e amorosa, desse cenário de guerra e pacifismo do expressionismo alemão.

Mário de Andrade, intransigente pacifista, internacionalista amador, comunica aos camaradas que bem contra-vontade, apesar da simpatia dele por todos os homens da Terra, dos seus ideais de confraternização universal, é atualmente soldado da República, defensor interino do Brasil.

E marcho tempestuoso noturno.

Minha alma cidade das greves sangrentas,

Inferno fogo INFERNO em meu peito,

Insolências blasfêmias bocagens na língua.

Meus olhos navalhando a vida detestada.

A vista renasce na manhã bonita.

Pauliceia lá em baixo epiderme áspera

Ambarizada pelo Sol vigoroso,

Com o sangue do trabalho correndo nas veias das ruas,

Fumaça bandeirinha.

Torres. Cheiros.

Barulhos E fábricas...

Naquela casa mora,

Mora, ponhamos: Guaraciaba...

A dos cabelos fogaréu!...

Os bondes meus amigos íntimos

Que diariamente me acompanham pro trabalho...

Minha casa...

Tudo caiado de novo!

É tão grande a manhã!

É tão bom respirar!

É tão gostoso gostar da vida!...

A própria dor é uma felicidade! (Andrade, Poesias completas 135-136)

O começo em prosa, de natureza informativa, traz as contradições de um eu lírico que, embora internacionalista e pacifista, é soldado e defensor do Brasil. Embora o conflito entre o ideal humanitário e a posição de soldado reflita o drama que parte da poesia expressionista absorveu, a voltagem desse conflito é diminuída pelo ambiente de exercícios militares, e não de uma guerra. Isso não impede, contudo, que a primeira estrofe seja agressiva e intratável trazendo a tonalidade feroz e sombria da estética expressionista, em ambiente de tempestade e ímpeto, blasfemo e infernal, composto de uma ambientação noturna - a que o fogo acrescenta a cor vermelha - que lembra igualmente as xilogravuras do movimento alemão.14 Essa dimensão da revolta e ódio é mantida na estrofe seguinte, de um único verso "Meus olhos navalhando a vida detestada". Vemos aí um estado de espírito de "queda e grito", a que se segue, pela alvorada, o renascimento da vida, com o cenário da metrópole, vagamente aproximável a um "despertar do coração".

Ao contrário de Crepúsculo da humanidade, a sequência urbana, em que a "epiderme áspera" de São Paulo é composta do "sangue do trabalho", é menos de "apelo e indignação" do que de um tumulto eufórico, em que a sequência de analogias livres em versos curtos rapidamente se une ao sentimento amoroso, recuperado em um dos refrãos do livro, a caracterização da amada pelos "cabelos fogaréu". O nome de origem tupi, Guaraciaba, que significa "lugar do sol" atribuído à amada (e talvez por isso o "Sol" esteja iniciado por uma letra maiúscula no terceiro verso da terceira estrofe) já traz algo de uma mediação local que a um tempo incorpora a lógica de "queda-ascensão" por uma via dolorosa, quando não dilacerada, como é a expressionista, mas modificada pelo novo contexto.

Nesse novo cenário, essa via dolorosa ganha uma euforia de outra ordem, menos humanitária e mais individual e doméstica, mediada pela realização amorosa, o que não impede a exemplaridade do verso final, que Mário manterá como um de seus lemas por toda a sua vida: "A própria dor é uma felicidade". É nesse último verso em que o achado expressivo de Mário sintetiza de modo original o "crepúsculo/alvorada" da humanidade, tratando-se menos de "amar o homem" do que "amar a vida" e de dar um sentido à própria existência individual, que nesse sentido pode se tornar exemplar. Verifica-se, assim, um tipo de lógica sacrificial, em que a realização plena das potencialidades da vida depende de um ritual doloroso, tornando a dor não um obstáculo, mas um componente para o objetivo a ser alcançado e, por isso, um motivo de felicidade.

Seguindo essa trilha, o que se vê é a criação de um idioma poético original filtrado pelo expressionismo alemão, que, por sua vez, é reposto em contexto diferente, ampliando as suas potencialidades poéticas. A disciplina militar, constantemente enunciada e rejeitada ao longo do livro, é desestabilizada por uma série de características individuais e locais: povo latino ("Losango cáqui XXXVIII"), país jovem ("Losango cáqui XXIX") e eu lírico indisciplinado ("Losango cáqui IX") e mais propenso ao amor do que à marcha ("Losango cáqui VI"). Dentre eles, a mais destacada é a paixão amorosa. Nesse sentido, há um contraponto de temas com refrãos próprios que percorre parte dos poemas do "diário militar" (isto é, aqueles que remontam à primeira concepção do livro): o da marcha com a célula rítmica "um-dois" (repetida nos poemas "VI", "XIV", "XX" e "XXXIX") e o dos cabelos loiros ou ruivos, com a fórmula "cabelos fogaréu" repetida duas vezes (poemas "ii" e "XVII"). Em dois poemas, "Losango cáqui VI" e "Losango cáqui XX", contrata-se explicitamente amor e marcha, nos quais se vislumbra o modo como o poeta-soldado filtrou à sua maneira a poética expressionista, de que tanto a marcha quanto a mulher loira/ruiva/possivelmente professora de alemão fazem parte.

Em "Losango cáqui VI", a temática amorosa é expressa pela técnica da associação livre situada em plena marcha. Com a fadiga dos exercícios, o poeta sente os pés queimando "Calcei botinas de febre" (V. 2) e cai, para levantar e seguir a macha "...um dois, um dois..." (V. 9), mas sem energia, "Tão atrás dos companheiros" (V. 9), revelando o mau soldado que ele é. Entretanto, ao imaginar-se ao lado da amada com os cabelos loiros/ruivos esvoaçando: "Mas como eu marcharia" (V. 14), "Si ela fosse soldado! / Si marchasse ao meu lado / Com a sarça ardente dos cabelos / Labaredando sob o quépi" (V. 20-23), o poeta não só retoma a energia da marcha como, fora do ritmo ("E nem marcha! / Desembestava maluco por essas pedras queridas", V. 27-28), ultrapassa os demais soldados na corrida, causando a ilusão de patriotismo: "Mário, cuidado, se alinha! / Tão na frente dos companheiros... / Contenha esse ardor patriótico, / Essa baita paixão pelo Brasil!" (V. 32-35). Na poética do livro, então, o patriotismo é algo satirizado diante das vicissitudes da vida cotidiana e, principalmente, diante das paixões artísticas e amorosas, as quais, porém, tornam-se originais justamente pela adequação a um contexto local, de uma matéria específica que reconfigura a forma poética. No caso do poema em questão: a marcha é desastrada, o patriotismo é um mal-entendido, a paixão é enérgica e desordenada, e o melhor modo de formalizá-la é a associação de imagens veiculada por verso livre - é a articulação desses elementos que confere originalidade a esse poema em específico e a essa poética como um todo.

A refração local, então, modifica os termos da poética do poeta-soldado: "em Losango cáqui, encontramos o universo militar cotidiano, brasileiro, maleável, longe da destruição promovida pela guerra europeia" (Paula 17). Essa maleabilidade terá a sua versão mais criativa e distante de sua origem militar em "Losango cáqui XX":

Cadência ondulada suave regular.

Névoa grossa pesada que nem som de trompa longe. O Sol colhe algodão nas praias do Tietê.

...um-dois, um-dois...

NA REDE.

A cadência me embalança.

Que gostosura!

Ela devia estar aqui

Com os seus cabelos... (137)

Novamente, reaparecem a célula rítmica da marcha e os cabelos da amada, só que em um contexto completamente alheio ao do exercício militar, pois a cadência "...um-dois, um-dois... " marca o movimento da rede em que o poeta se entrega à contemplação da natureza, da amada e ao prazer de seu próprio balanço. Note-se, em relação à natureza, que o Sol continua iniciado por maiúscula (novamente prefigurando a lembrança da amada), e que sua posição talvez seja a do ocaso, talvez a da alvorada, pois só se sabe que o sol está no horizonte, colhendo "algodão nas praias do Tietê" - "algodão" que, por sua vez, remete à maciez e ao conforto do eu lírico deitado na rede. O tema amoroso que encerra o poema se conecta aí com uma atitude antimilitar e antidisciplinar por excelência: a da preguiça, que, em si, é um tema que será tratado de modo mais amplo por Mário em um poema como "Rito do Irmão Pequeno" (Livro Azul, 1941) e tornado um dos refrãos de Macunaíma ("Ai, que preguiça!"). Em uma transfiguração completa, a célula rítmica "um-dois" deixa de compor uma atitude enérgica, combativa, disciplinada e exaustiva para se unir à contemplação, ao devaneio, à lembrança feliz e quase melancólica da amada, o que só é possível pela troca do instrumento que propulsiona o movimento: a passagem da botina militar à rede, tão cotidiana e informal quanto a língua poética que Losango cáqui elabora.

Conclusão

Como conclusão, observa-se na poética de Losango cáqui e, de modo geral no modernismo brasileiro entre 1922 e 1924, um momento de aclimatação local acelerada e original das vanguardas europeias - o da associação de ideias da vanguarda parisiense e, no caso de Mário de Andrade, o do contexto belicoso e igualmente dos ideais humanistas do expressionismo alemão. Diante desse último, haveria no contexto "militar" brasileiro um desalinho jovem e criativo que teria a capacidade de fornecer ao modernismo uma inflexão própria para captar o verso livre, as associações livres, a linguagem coloquial, a aproximação da poesia com a vida cotidiana. Isso deve chamar a atenção do crítico para um momento da poesia modernista brasileira que não se dissolve no vórtice poderoso do nacionalismo literário, embora dialogue com ele. Trata-se, antes, de um diálogo franco e da busca de autonomia no seio da cacofonia de línguas e estilos do modernismo internacional, para o qual a plataforma da poesia pau-brasil de Oswald de Andrade e o poema longo mariodeandradiano foram as respostas mais bem-sucedidas no contexto paulistano. Isso mostra que o modernismo brasileiro já possuía um conjunto de reflexões e realizações poéticas capazes de aclimatar à sua maneira a linguagem da poesia modernista e criado, dessa forma, as bases de um novo prisma estético e histórico-literário.

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1Poesias (1941) foi o último livro de poemas que Mário de Andrade publicou em vida. Lira paulistana seguida de O carro da miséria (1945) é de publicação póstuma.

2Penso especificamente em: Paula, Lopes, e Villela. Segundo Villela: "diferentemente de outras obras de Mário, Losango cáqui tem passado à margem da crítica" (11).

3 Para outra organização da temática do livro, com distribuição dos poemas a partir de seus temas, ver Villela (62).

4 Sobre essa relação, ver Grembecki.

5 Grifo do original.

6Ainda comenta especificamente sobre a "trajetória editorial de Mário de Andrade": "ele aceitou editar os livros por sua própria conta, valeu-se de suas relações pessoais para fazer as obras circularem e não considerou a hipótese de o autor se profissionalizar" (115). A situação de Mário é radicalmente modificada nos anos 1940, quando é sistematicamente editado e re-editado pela editoria da Livraria Martins, para a qual organiza a edição de suas obras completas.

7Os dois livros foram publicados na década de 1980, ver Aranha, e Almeida (Tunel).

8Isso lembra o caso do modernismo português do grupo de Orpheu, cujos membros só publicaram em revistas, e não em livros — o livro Dispersão (1914), de Mário de Sá-Carneiro, é anterior à revista, cujo primeiro número é de 1915.

9Em carta de 21 de fevereiro de 1926, Mário comenta com Bandeira: "O Losango você não pode imaginar que escândalo e que irritação causou aqui". A que se segue uma descrição da posição hostil de alguns jornais de São Paulo (M. A. Moraes 274).

10Ainda sobre o aspecto visual do livro, a sua capa, feita por Di Cavalcanti, tem ganhado destaque em estudos recentes sobre Losango cáqui: "Na imagem, um soldado está sentado em posição de descanso, fumando cachimbo e portando sua arma em uma paisagem que não remete claramente nem à cidade nem à natureza. Ou seja, o soldado não é, de fato, um soldado: não está em posição de ataque, nem demonstra fúria ou medo; está, antes sim, perdido em devaneios, com seu olhar baixo, tal como Mário de Andrade descreve a si mesmo durante os exercícios militares, uma figura avessa, à margem" (Lopes 42). Ver também Villela (55).

11 Tradução nossa. No original: "Even some of the mere enumerations of neologisms printed one under another are successful poems".

12A tradução das partes é de Paula, que ainda explica o subtítulo e suas implicações: "Como anuncia o subtítulo, Symphonie júngster Dichtung, constitui quatro movimentos da sinfonia da poesia renovadora, que congrega 270 poemas [...] originalidade na divisão que busca, interdisciplinarmente, armar uma sinfonia de modo a reproduzir a intensa pulsação da época" (42-43).

13Além Paula, no trecho citado, isso também foi notado por Lopes: "a reflexão temática provocada por Losango cáqui — que se liga ao universo alemão seja pela professora de Mário de Andrade seja pela experiência militar — é de importância central para a definição do brasileiro, isto é, propicia uma verificação de especificidades do caráter nacional" (71).

14 A questão das cores do poema está presente na análise de "Losango cáqui XVII" é desenvolvida por Lopes (55-59).

Cómo citar este artículo (MLA): Pasini, Leandro. "A poética de Losango cáqui, de Mário de Andrade: temporalidade e experimentação no modernismo brasileiro". Literatura: teoría, historia, crítica, vol. 22, núm. 2, 2020, págs. 211-240.

Sobre o autor

Leandro Pasini é professor de literatura brasileira na Universidade Federal de São Paulo. É autor de A apreensao do desconcerto: subjetividade e naçao na poesia de Mário de Andrade (São Paulo, Nankin, 2013).

Recebido: 20 de Dezembro de 2019; Aceito: 19 de Fevereiro de 2020

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