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Literatura: Teoría, Historia, Crítica

Print version ISSN 0123-5931

Lit. teor. hist. crit. vol.24 no.1 Bogotá Jan./June 2022  Epub Mar 09, 2022

https://doi.org/10.15446/lthc.v24n1.93794 

Artículos

"Lázaro: eu sou a tua morte": imagens de Lázaro em Sylvia Plath e Hilda Hilst

"Lázaro: eu sou a tua morte": imágenes de Lázaro en Sylvia Plath y Hilda Hilst

"Lázaro: eu sou a tua morte": Images of Lazarus in Sylvia Plath and Hilda Hilst

Lara Luiza Oliveira Amaral1 

Willian André2 

1 Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, Brasil 1264292@dac.unicamp.br

2 Universidade Estadual do Paraná, Campo Mourão, Brasil willian.andre@ies.unespar.edu.br


Resumo

Neste artigo apresentamos algumas reflexões sobre a releitura do personagem bíblico Lázaro em duas produções literárias do século 20: o poema "Lady Lazarus" de Sylvia Plath, e a narrativa Lázaro, de Hilda Hilst. Por meio dessa leitura comparada -que aqui se apresenta não tanto uma estrutura fechada de tópicos, mas sim em fragmentos reflexivos abertos, acentuados por certo exercício de estilo-, procuramos mostrar e comentar formas modernas de apropriação de uma narrativa que remonta aos primórdios da cultura ocidental. Para reforçar o elemento intertextual, tangenciamos outras releituras sobre o mesmo personagem, e, principalmente, recorremos a ponderações sobre as temáticas da angústia e da morte. O percurso reflexivo mostra uma apropriação de Lázaro que se constrói em caráter de subversão, mantendo a ressurreição do personagem não para mostrar o triunfo da vida sobre a morte, mas sim o seu oposto.

Palavras-chave: Hilda Hilst; intertextualidade; Lázaro; leitura comparada; Sylvia Plath

Resumen

En este artículo presentamos reflexiones sobre la reinterpretación de Lázaro, el personaje bíblico, en dos producciones literarias del siglo XX: el poema "Lady Lazarus", de Sylvia Plath, y la novela Lázaro, de Hilda Hilst. A través de esta lectura comparativa -que aquí se presenta no como una estructura cerrada de tópicos, sino en fragmentos reflexivos abiertos, acentuados por un ejercicio de estilo-, buscamos mostrar y comentar formas modernas de apropiación de una narrativa que se remonta a los inicios de la cultura occidental. Para reforzar el elemento intertextual, reunimos otras reinterpretaciones sobre el mismo personaje y recurrimos, principalmente, a consideraciones sobre los temas de la angustia y la muerte. La trayectoria reflexiva muestra una apropiación de Lázaro como subversión, que mantiene la resurrección del personaje, pero no para mostrar el triunfo de la vida sobre la muerte.

Palabras clave: Hilda Hilst; intertextualidad; Lázaro; lectura comparativa; Sylvia Plath

Abstract

In this article, we propose reflections on the reinterpretation of Lazarus, the biblical character, in two literary works from the 20th Century: the poem "Lady Lazarus", by Sylvia Plath, and the novella Lázaro, by Hilda Hilst. By means of this comparative reading, presented here not as a closed and topicalized structure, but as an open gathering of reflective fragments, underlined by an exercise of style, we aim at showing and commenting modern forms of appropriation of a narrative that echoes back to the beginnings of Western culture. To emphasize the intertextual element, we bring up some other reinterpretations of the same character; we resort, mainly, to considerations on the themes of anguish/dread and death. The reflective path shows an appropriation of Lazarus as subversion that keeps the character's resurrection not to emphasize the triumph of life over death.

Keywords: Hilda Hilst; intertextuality; Lazarus; comparative reading; Sylvia Plath

Por vezes, em pânico, a mente se esvazia, o mundo desaparece no vácuo e eu fico achando que preciso correr ou andar pela noite, por muitos quilómetros, até cair de exaustão. Tentando escapar? Ou ficar sozinha tempo o suficiente para desvendar o segredo da esfinge. Os homens esquecem. Disse Lázaro, risonho.

Sylvia Plath, Os diários

LEMOS NAS PÁGINAS AMARELADAS A história de um grande milagre. Ouvimos de vozes de terceiros o levantar da pedra, as faixas a embalar o morto, o homem antes cadáver hoje, novamente, Lázaro. Após a morte daquele que pela mão pegou o morto e deu-lhe o sopro da vida, caminhamos durante anos, décadas, séculos. Alcançamos o século 20 e lemos, novamente, a história de Lázaro (re)escrita. Dessa vez são mãos femininas: duas mulheres seguem seus destinos, em pontos distantes do mapa, a recontar o milagre. Sylvia Plath, sob o frio da Inglaterra, enrola-se nas faixas pútridas que restaram, morre e renasce pelas próprias mãos, transforma Lázaro em seu reflexo: Lady Lazarus. A olhar a figueira de frente para a casa simples onde se refugia, Hilda Hilst, em terras brasileiras, escreve em busca da mão, da face, da resposta do pai daquele que, um dia, ergueu Lázaro de sua tumba.

O personagem do Evangelho de João retorna à vida mais uma vez. A Bíblia, entendida aqui como um dos pontos de referência da literatura universal, é retomada por muitos escritores. Seus personagens são postos em cena: o nascimento de Jesus é recontado por mais dez; a história de Lázaro por, pelo menos, mais duas; o suicida Judas talvez se torne o protagonista carismático, e não mais o inimigo da fé. Como em um palimpsesto, a literatura deixa vestígios de seus textos anteriores para marcar o texto seguinte. Seguimos para o século 20, porém as marcas bíblicas de um tempo inexato continuam no pergaminho. O discurso se refaz, mas nunca se repete. A ideia de colocar Lázaro, mais uma vez, prestes a renascer não é simplesmente ler a narrativa de João com outra voz. Reescreve-se a cena, mudam os personagens, mescla-se o tom de milagre com o de indignação de um povo que, hoje, não encontra mais Deus.

Retomemos aquela primeira faixa: essa que envolve o corpo de cheiro forte, pútrido e doce, de vida e morte. O ponto de origem é o capítulo 11 do Evangelho de João. Conforme o mito bíblico, Lázaro, irmão de Maria e Marta, vive em Betânia. Quando ele adoece, as irmãs pedem para que chamem Jesus, e somente quatro dias após o sepultamento o Messias se apresenta: "Eu sou a ressurreição. / Quem crê em mim, ainda que morra, viverá. / E quem vive e crê em mim/ jamais morrerá. / Crês nisso?" (Jo. 11. 25-26).1 As irmãs assentem. Colocado frente ao sepulcro de Lázaro, Jesus chora. Diante da gruta, pede para que tirem a pedra sobreposta e grita em voz alta: "Lázaro, vem para fora!" (11. 43), e Lázaro sai, "com os pés e mãos enfaixados e com o rosto recoberto com o sudário" (11. 44). Jesus, então, diz: "Desatai-o e deixai-o ir" (11. 44).

É a esse desatar das faixas que ataremos nossas reflexões.

A faixa se enrosca no apartamento pequeno de Sylvia Plath e seus dois filhos. Em outubro de 1962, ela escreve o poema que seria uma das maiores marcas de sua obra, "Lady Lazarus". O eu lírico é borrado nos limites da autobiografia. Um eu que poderia ser ela. Um Lázaro que poderia ser Sylvia: a mulher que renasceu, mais uma vez e sempre, de suas mortes autoinfligidas.2 A mão que a levanta é a mesma que a fere, a mão que a atormenta é a mesma que retira as faixas que embalsamam seu corpo gelado e oco. A morte a visita três vezes. Até o momento da escrita do poema, o eu lírico sabe das duas primeiras e aguarda a terceira com o lápis em mãos: "Tentei outra vez. / Um ano em cada dez / Eu dou um jeito-" ("Lady Lazarus" 45). Lázaro, agora mulher, renasce constantemente para a plateia que assiste ao show comendo amendoim nas arquibancadas. Não há Jesus para dizer as palavras finais, é da sua própria boca que vem o pedido: "Desenfaixem minhas mãos e pés - / O grande strip-tease. / Senhoras e senhores" (47). A fênix ressurgida se ergue mais uma vez. O renascer da suicida se transmuta em striptease.3

A faixa desenrolada é jogada ao chão, mas continuamos vendo um corpo. Ainda no século 20, poucos anos após a publicação do poema de Sylvia Plath, Hilda Hilst traz à tona sua primeira coletânea de textos de ficção: Fluxo-Floema (1970). Entre "Fluxo", "Osmo", "O unicórnio" e "Floema", temos "Lázaro".4 O Lázaro de Hilst tem consciência de sua morte. As mesmas irmãs que figuram na narrativa bíblica de João residem aos pés da cama do moribundo hilstiano em seu momento final. Um final que é também começo. Ele escuta uma das irmãs gritar para alguém: "Mestre, Mestre, ajuda-me, onde TU estiveres, ajuda-me, êle está morrendo! Não, Marta, eu não estou morrendo: eu estou morto" (Hilst 90). Os fatos básicos iniciais apresentados pelo evangelista são mantidos, mas os desdobramentos propostos por Hilst são radicais.

A primeira parte do texto, o Lázaro hilstiano a narra a partir de um estado pós-morte, do ponto de vista de quem tem o "Jeito de ver de um morto" (90). Não bastasse isso, à sua ressurreição está vinculada uma espécie de versão deturpada do Espírito Santo, uma figura monstruosa de corpo peludo e língua áspera chamada Rouah: "tôsco, os olhos acesos, o andar vacilante, as pernas curtas, parecia cego, apesar dos olhos acesos, as mãos compridas, afiladas, glabras, eram absurdas aquelas mãos naquele corpo, todo êle era absurdo, inexistente, nauseante" (93).5 Além disso, após o suposto milagre de ter sido devolvido à vida, o personagem se encontra subitamente no futuro e, ao ser acolhido por monges, descobre a verdade que reina sobre a terra: "Escuta, filhinho, Lázaro meu filhinho, o Jesus de quem falas, está morto há muito tempo, e para os homens de agora nunca ressuscitou, nem está em lugar algum" (106).6

As faixas embalam o mesmo corpo ferido pela morte. Em três textos pertencentes a gêneros distintos, três Lázaros morrem e renascem pelas mãos do divino desconhecido: o de João, o de Plath e o de Hilst. As similitudes das "releituras" se baseiam na ideia principal do texto-base: a figura de Lázaro, morte e ressurreição, as faixas do morto. As diferenças, por outro lado, são várias: o Lázaro de Plath está preso em um eterno ciclo de renascimento, transformou o milagre em espetáculo de circo, as feridas são expostas como mais um show a entreter o público entediado. A arte de morrer é seu grande número: "Morrer / É uma arte, como tudo o mais. / Nisso sou excepcional" ("Lady Lazarus" 47). O Lázaro de Hilst é ressuscitado por via de uma transcendência medonha, torna-se morto-vivo na acepção mais crua do termo, e a ressurreição lhe cai como um pesadelo: ao final, Jesus está morto, sua imagem desfigurada é presa em cruz como motivo de crença, mas "a arte de viver da fé" já não existe. O milagre perdeu o brilho, a luz que antes alimentava os fiéis hoje apavora, atordoa, tornou-se o farolete mais próximo do palco, a alimentar o tédio de espectadores sem vida.

Não há como esquecer, contudo, da faixa principal a roçar o pescoço de todos os Lázaros: aquela que ata o nó da garganta: a angústia. Na narrativa bíblica, sabemos que Jesus chorou diante do sepulcro daquele que o amava, que as irmãs se angustiaram na espera pelo filho de Deus que tardou a chegar, mas não sabemos o que Lázaro sentiu. O Lázaro de João cala-se. O Lázaro de Hilst, em contrapartida, descreve com detalhe a hora da morte, o grito preso na garganta, as tâmaras que não comeria mais, o nojo em face de Rouah, o pavor diante dos homens céticos. O Lázaro de Plath coloca um sorriso amarelo no rosto de artista para mais uma performance, transforma sua morte em cena e espera o próximo strip-tease/renascimento:

  • Regresso em plena luz do sol

  • Ao mesmo local, ao mesmo rosto, ao mesmo grito

  • Aflito e brutal:// 'Milagre!'

  • Que me deixa mal. ("Lady Lazarus" 49)

É ainda sob a mesma faixa de angústia que o Jesus de José Saramago, em O Evangelho segundo Jesus Cristo, hesita diante de Lázaro:

só falta que Jesus, olhando o corpo abandonado pela alma, estenda para ele os braços como o caminho por onde ele há-de regressar, e diga, Lázaro, levanta-te, e Lázaro levantar-se-á porque Deus o quis, mas é neste instante, em verdade último e derradeiro, que Maria de Magdala põe uma mão no ombro de Jesus e diz, Ninguém na vida teve tantos pecados que mereça morrer duas vezes. (Saramago 428)

Maria de Magdala, recriada por Saramago, parece enxergar o Lázaro de Plath, que repete a mesma cena todos os dias, transformando o milagre em performance, morrer em arte. As feridas abertas em carne viva, a angústia presa entre os dentes do sorriso de artista, a mesma cena em repetição para a risada apática de um público que assiste ao grande milagre. Lady Lazarus permaneceu presa no eterno retorno, o Lázaro de Hilst renasceu mais uma vez, o Lázaro de João caminhou para fora do sepulcro, mas o Lázaro de Saramago não. E para aqueles que ouviram novamente o coração bater no som ritmado da existência, "Eu sou. Eu sou. Eu sou",7 a angústia inevitável desenrola a faixa, ata o próximo nó.

As reflexões que culminam no conceito moderno de angústia remetem novamente à Bíblia e possuem certa verve teológica, sendo tributárias, principalmente, do filósofo dinamarquês S0ren Kierkegaard. Dono de um cristianismo pouco ortodoxo, ele ofereceu algumas das melhores caracterizações da angústia, até hoje atuais, em pelo menos dois livros: Temor e Tremor, assinado pelo pseudónimo Johannes de Silentio, e O conceito de angústia, sob o pseudónimo Vigilius Haufniensis.8 Em Temor e Tremor, ele elege Abraão como o maior representante daquele que atingiu a fé em sua plenitude, venceu as amarras da angústia e deu o salto final. Abraão foi posto à prova, tinha como dever sacrificar seu único filho, e é quando o cutelo já se ergue alto em sua mão para desferir o golpe que o anjo aparece e o interrompe, impedindo a morte de Isaac. Essa situação, para Johannes de Silentio, transgride qualquer possibilidade de interpretação:

Quando, porém, começo a meditar sobre Abraão, sinto-me como que aniquilado. Caio a todo momento no paradoxo inaudito que é a substância de sua existência; a todo instante sinto-me rechaçado, e não obstante o seu apaixonado furor, o pensamento não consegue compreender este paradoxo nem na medida de uma espessura de cabelo. Para conseguir uma saída reteso todos os músculos: no mesmo momento sinto-me paralisado. (26)

Kierkegaard se assombra porque não é capaz de repetir o salto. O passo seguinte é interrompido pelo anjo que não veio, pela fé que não o alcança a tal ponto. Mas Abraão conseguiu, diante do abismo, mergulhado em angústia, saltar para o Absoluto: "Gerações inumeráveis conheceram de cor, palavra a palavra, a história de Abraão; porém quantos tiveram insónia por causa dela?" (Temor e Tremor 21). Quantos pensaram nos três dias de caminhada até o local sagrado, nos passos surdos de Abraão a levar seu filho para seu próprio assassinato? "O que é omitido na história do patriarca? A angústia" (21).

A Lázaro foi concedida mais uma chance, um retorno, uma possibilidade a mais. Para Kierkegaard, é justamente diante da possibilidade que a angústia se apresenta. Em O Conceito de Angústia, Vigilius Haufniensis reflete sobre as origens desse pathos a partir de Adão. O primeiro homem, ao ouvir Deus declarar que não deveria comer os frutos da "Árvore do Bem e do Mal", inquieta-se: "Adão não entendia essa frase; porque, como poderia entender a diferença entre o bem e o mal se a diferenciação apenas se fixou após ter sido saboreado o fruto?" (Conceito de Angústia 53). O "bem" e o "mal" não representam nada para Adão até o momento da primeira mordida: "A proibição deixa inquieto Adão, porque desperta nele a possibilidade da liberdade. O que se ofertava à inocência com um nada da angústia adentrou-o e conserva ainda aqui um nada: a aflitiva possibilidade de poder" (53). É diante da possibilidade, do bem e do mal representados pela fruta que pesa em suas mãos, que Adão sente angústia. O ser humano, reflexo de Adão, herda o mesmo sentimento, como se em um mise en abyme de espelhos, um olhar vertiginoso para o abismo:

A angústia pode ser comparada à vertigem. Quando o olhar imerge em um abismo, existe uma vertigem que nos chega tanto do olhar como do abismo, visto que nos seria impossível deixar de o encarar. Esta é a angústia, vertigem da liberdade, que surge quando, ao desejar o espírito estabelecer a síntese, a liberdade imerge o olhar no abismo das suas possibilidades e agarra-se à finitude para não soçobrar. (Conceito de Angústia 74)

Quando o homem olha para o abismo, apossado pela vertigem, ele vê a si mesmo e se aterroriza. A palavra falha, a linguagem não alcança o objeto, a queda das letras impede a descrição. Assim como o Lázaro de Hilst, que não consegue definir a dor que o assola após o renascimento:

Se eu pudesse falar dessa dor, dor que não é simplesmente a ausência de quem se ama [...] - não, não é a ausência, é uma outra coisa, é uma certeza tristíssima de que daqui por diante o coração dos homens se tornará mais escuro... mais... isso é possível? Ainda mais? (Hilst 102)

A dor de Lázaro é a angústia diante da escuridão que assola o coração dos homens.

Nos três textos aqui contemplados, a morte visita o personagem. No evangelho, é três o número de dias em que ele se mantém refém dela. Vale a pena enfatizar essa questão numerológica, dada sua importância para a exegese cristã. Também é três o número de mortes alcançadas por vontade própria que Lady Lazarus retoma em seu ritual: "Esta é a Número Três. / Que besteira / Aniquilar-se a cada década" ("Lady Lazarus" 45). A descrição que o eu lírico plathiano faz de suas próprias feições dá a ideia de alguém que um dia já visitou o mundo dos mortos e retirou deles suas formas:

  • O nariz, as covas dos olhos, a dentadura toda?

  • O hálito amargo

  • Desaparece um dia.// Em muito breve a carne

  • Que a caverna carcomeu vai estar

  • Em casa, em mim. (45)

É com semblante de caveira e carne ainda em decomposição que Lázaro é ressuscitado por Sylvia Plath, e é em tempo presente que Hilda Hilst o faz provar do gosto amargo do morrer:

Primeiro um golpe sêco na altura do coração. O espanto de sentir êsse golpe. Os olhos se abrem, a cabeça vira para o lado, tenta erguer-se, e dá tempo de perceber um prato de tâmaras na mesa comprida da outra sala. Dá tempo de pensar: alguém que não eu vai comer essas tâmaras. A cabeça vira para o outro lado. A cabeça ergue-se. A janela está aberta. E vejo as figueiras, vejo as oliveiras. Foi assim mesmo: vi tâmaras, figueiras, oliveiras. De repente vejo Marta. Ela põe as duas mãos sóbre a bóca. Ainda tento dizer: Marta, Marta, pare de arrumar a casa, eu estou morrendo. Tento dizer, mas uma bola quente vem subindo pela garganta, agora está na minha boca, tento dizer: Marta, Marta, é agora. Ainda vejo a cabeça de Maria na beira da cama. A cabeça cheia de cabelos escuros na beira da cama. Foi a última coisa que vi: a cabeça de Maria. (Hilst 89-90)

A descrição lenta da morte assombra o homem. Quando a encapuzada macérrima aparece, em muitos casos a imagem de Lázaro reluz aos olhos dos escritores. Em uma companhia de "luto-fragmentos" acentuadamente autoficcionais, o escritor contemporâneo Tiago Ferro descreve a perda da filha em O Pai da Menina Morta com pedaços recortados de angústia. A morte se torna a figura central do romance e, em um momento breve, o narrador-protagonista menciona a imagem do renascido:

Ninguém gosta de ficar frente a frente com a verdade. Ele me consola falando que ao menos a Instituição está me dando a opção de escolher. Não, entre a vida e a morte não é possível. Sim, mas e Lázaro? Com muita paciência ele solta uma baforada lenta de cigarro light e me explica que um dia Lázaro também morreu. Que ele ressuscitou para a filmagem da cena e seis meses depois teve um AVO fulminante em um mercado da região. Um evangelho apócrifo conta que a família nessa segunda vez não se deu ao trabalho de sepultá-lo. (Ferro 135)

Lázaro bamboleou entre a vida e a morte como um acrobata iniciante. Sua imagem retornou à vida, ora para ser artista, ora para enfrentar o mundo atual com sua descrença. Para Ferro, o corpo jaz em um mercado público, sem interesse por parte daqueles que um dia choraram aos pés de sua cama. Novamente, fica a certeza de que, independente do período, a morte é substantivo singular: morre-se, sempre, sozinho:

Ultimamente, na solidão em que se encontrava, deitado com o rosto virado para as costas do sofá, solidão no meio de uma cidade superpovoada e rodeado de inúmeros conhecidos - solidão mais completa do que qualquer outra, seja no fundo do mar ou no centro da Terra -, nessa assustadora solidão, Ivan Ilitch vivia somente das lembranças do passado. (Tolstói 92)

Em digressão, lembramos das páginas breves de Tolstói, da figura de Ivan Ilitch preso à cama, aguardando o fim. Ilitch tem irmãs, esposa e filhos, porém, quando a morte se aproxima, é em fila única que seguimos seu caminho. Independente da vida que escolha, Lázaro está, sempre, sozinho diante da morte. Lady Lazarus expõe cartazes divulgando sempre um show solo, monólogo de curta duração.

Desde as primeiras linhas da novela de Tolstói, já sabemos que o personagem está morto, e é em retrocesso que avançamos na narrativa: o fim da vida, a decadência, a doença. Já em seus momentos finais, Ivan Ilitch agoniza em sua cama, descrevendo a aproximação lenta da morte:

"Assim como a dor piora cada vez mais, minha vida toda foi progressivamente piorando. Há um ponto de luz lá longe, no início da vida, mas, depois disso, tudo foi ficando cada vez mais negro e afastando-se cada vez mais, em proporção inversa à distância que me separa da morte", pensou Ivan Ilitch. E a imagem de uma pedra caindo em velocidade crescente tomou conta de sua mente. A vida, uma série de sofrimentos cada vez maiores, acelera rapidamente para o final e este final é o sofrimento mais terrível. "Eu estou caindo... " Estremeceu e fazendo um esforço tentou resistir, mas tinha consciência de que era impossível e, novamente, com os olhos cansados mas incapaz de não olhar o que estava diante de si, olhou as costas do sofá e esperou. Esperou, aguardando a qualquer momento a terrível queda, o empurrão, a destruição. "Não adianta resistir", dizia-se. (Tolstói 93)

Assim como o Lázaro de Hilst,9 Ivan Ilitch ainda tenta dizer. Ele ainda busca, nas palavras fragilizadas pela linguagem em decadência, uma fórmula, síntese ou estrutura, a fim de descrever o que sente. A morte caminha em passos lentos: ainda há uma dezena de páginas para Ivan Ilitch sofrer, ainda há uma nova vida para Lázaro morrer. A morte, para Hilst, vem ao encontro de seu personagem, para em frente a ele e, com todas as letras, dita seu futuro: "Êle disse: Lázaro, olha-me bem, Lázaro: eu sou a tua morte" (Hilst 91).

Essa mesma dificuldade de expressar a sensação em linguagem é especialmente recorrente quando se trata de uma das maneiras mais ultrajantes do morrer: o suicídio. Não é possível explicá-lo, tampouco compreendê-lo. Alvarez, que foi amigo íntimo de Sylvia Plath em seus últimos anos, chega a formular a teoria de que "o suicídio é um mundo fechado que tem uma lógica própria e irresistível" (Alvarez 127). Conforme registra o autor em O deus selvagem, mesmo as tentativas mais bem intencionadas de significação efetiva sobre o ato, quando muito, "ajudam a desembaraçar o emaranhado de motivos e a delinear a profunda ambiguidade do desejo de morrer, mas dizem muito pouco sobre o que significa ser suicida, ou sobre como se sente um suicida" (127). A exemplo de Alvarez, Andrew Bennett reflete, em Suicide Century, que "o suicídio provoca nossas capacidades de produção de sentido, persuade-nos à interpretação, mas sempre - e necessariamente - resiste a tais capacidades" (20).10 Em complemento, o autor enfatiza que "o suicídio precisa ser explicado, mas não pode ser. Ele nos oferece e nos priva, a um só tempo, de um sonho de coerência" (20).

Ao tentar metaforizar a proximidade da morte, Ivan Ilitch visualiza "uma pedra caindo em velocidade crescente", para logo depois dizer "Eu estou caindo...". A pedra, um objeto inanimado, subitamente se transmuta em corpo humano, e sempre poderíamos pensar em um corpo caindo por vontade própria, em um Lázaro que é Lady e tem manias de queda, como um gato e suas nove vidas para morrer: "E eu uma mulher sempre sorrindo. / Tenho apenas trinta anos. / E como o gato, nove vidas para morrer" ("Lady Lazarus" 45). A voz de Maria de Magdala volta a fazer eco, os pecados de uma vida não foram suficientes para Lady Lazarus, que retorna para um novo recomeço. Damos voz ao eu lírico que nos conta suas passagens:

  • Tinha dez anos na primeira vez.

  • Foi acidente.

  • Na segunda quis

  • Ir até o fim e nunca mais voltar.

  • Oscilei, fechada

  • Como uma concha do mar.

  • Tiveram que chamar e chamar

  • E tirar os vermes de mim como pérolas grudentas.

  • ("Lady Lazarus" 47)

Em uma leitura mais próxima da biografia de Sylvia Plath, vemos que tais datas se relacionam com a presença da morte em sua vida. Na infância, pouco antes de completar dez anos de idade, seu pai falece. A ausência do pai faz presença em sua obra, seja em prosa ou poesia. Quando jovem, aos vinte anos, temos a segunda visita. Dessa vez a morte veio pelas próprias mãos, em uma "tentativa falha" de suicídio. Com um frasco de comprimidos em mãos, Plath se esconde no porão de sua casa e permanece desaparecida por três dias. A imagem de "concha", o estar "fechada", parece remeter a essa experiência. Tal aproximação também pode ser feita com o romance A redoma de vidro, em que Plath (187-189) reconta esse período de sua vida através da personagem Esther Greenwood. De cunho autobiográfico, muitas das passagens do romance podem ser comparadas a trechos dos diários de Sylvia, recentemente republicados no Brasil. Em 1956, três anos após a tentativa recontada em seu romance, ela escreve em seu diário:

Falo com Deus, mas o céu está vazio e Órion passa sem dizer nada. Sinto-me como Lázaro: a história dele me fascina. Estava morta, levantei-me novamente e até recorrer ao mero aspecto sensorial de ser suicida, de ter chegado tão perto, de sair do túmulo com as cicatrizes e as marcas na face (é minha imaginação) que se tornam mais visíveis: pálidas como um sinal de morte na pele vermelha, fustigada pelo vento, escura de tão bronzeada nas fotografias, em contraste com a palidez invernal tumular. (Diários 232)

O excerto do diário torna ainda mais enfática a impressão de Lady Lazarus ser um tipo de alter ego, eu ficcionalizado, autobiográfico. Fascinada pela história de Lázaro, ela própria sente que renasceu após uma tentativa de autoaniquilamento interrompida. O céu, contudo, continua mudo. O milagre ainda a "deixa mal".11 Em uma menção rápida, o personagem bíblico volta a aparecer em seus diários (574): "CONTOS SOBRE Hospícios. Tema de Lázaro. Volta do mundo dos mortos. Destruição de termómetros. Enfermaria para furiosos. LÁZARO MEU AMOR". O tema latente, a figura renascida, o morto-vivo que enrola suas faixas no corpo jovem de Sylvia Plath.

A insistência com que Plath associa a figura de Lázaro à ideia do suicídio é notável, e só faz reforçar o paradoxo contido no próprio ato do autoaniquilamento. Uma das interpretações mais corriqueiras que se pode assumir é aquela, veiculada em senso comum, sobre o suicida acreditar que sobreviverá ao próprio suicídio. Tal percepção consiste em uma vulgarização do entendimento psicanalítico sobre o embate dos impulsos de vida e morte na interioridade de um indivíduo, que envolve processos bem mais complexos, e que ainda hoje podemos encontrar bem sintetizado em materiais informativos.12 Uma das primeiras formulações dessa interpretação, na história da psicologia, foi proposta em 1938 por Karl Menninger, em Man Against Himself:

Fica a impressão de que, para tais pessoas, a tentativa de suicídio é às vezes uma histrionia fingida, e que sua capacidade para lidar com a realidade é desenvolvida de maneira tão pobre que eles agem como se pudessem realmente se matar, mas não morrer.13 (71)

Ainda que Menninger seja enfático, em outra parte de seu estudo, sobre a realidade do suicídio em uma obra literária ser mera fantasia,14 não há por que duvidarmos da seriedade de sua proposta. Porém, a complexidade dessa condição do suicida, conforme explicada pela tradição da psicologia, não pode ser reduzida a um simples "mito de ressurreição". É isso que parece fazer Jeffrey Berman, em sua análise da obra de Sylvia Plath: "The Bell Jar e dois dos poemas mais celebrados de Plath, 'Daddy' e 'Lady Lazarus', retratam o suicídio como um prelúdio ao renascimento" (Berman 139).15 Para o autor,

[a] vulnerabilidade de Plath foi intensificada pela mitologia pessoal que ela construiu em torno do suicídio. Ela passou a ver a si mesma como uma artista do escape, impelida a cometer suicídio para então, magicamente, ressuscitar - uma mitologia que funciona bem melhor na literatura do que na vida real.16 (140)

O acento irónico ao final do excerto contribui ainda mais para denunciar a vulgarização contida na interpretação reducionista de Berman. Ao se ater apenas a essa suposta "mitologia de ressurreição", o autor negligencia aquilo que aparece com maior evidência ao longo de um poema como "Lady Lazarus": o quanto a experiência de ressurreição ali retratada é dolorosa e esvaziada de sentido; o quanto o eu lírico plathiano sente-se como um morto-vivo. Esse eu lírico não está, como sugere Berman (139), "rejeitando seu papel de vítima e triunfando sobre seus opressores",17 mas sim rejeitando uma ideia de "glória" contida na ressurreição para mostrar o quanto continuar vivo, em suas condições, é o que há de mais doloroso e terrível que se possa imaginar.

Em seu terceiro e último "Sermão de Quarta-Feira de Cinza", Antonio Vieira reflete sobre a figura bíblica de Lázaro, em um movimento que, para Alcir Pécora (57), evidencia que, "ao contrário do que é costume entre os homens, a morte deve ser amada e a vida temida". Apesar da reconhecer a importância do episódio da ressurreição para a glória de Deus, é em outros termos que se constrói a interpretação do padre jesuíta:

Chora Cristo a Lázaro quando o há de ressuscitar, não o chorando morto; porque estando já livre dos trabalhos, das misérias, e dos perigos da vida, por meio da morte, agora por meio da ressurreição o tornava outra vez a meter nos mesmos trabalhos, nas mesmas misérias, e nos mesmos perigos. A todos esteve bem a ressurreição de Lázaro, e só ao mesmo Lázaro esteve mal [...], porque a ressurreição o tirou do descanso para o trabalho, do esquecimento para a memória, da quietação para os cuidados, da paz para a guerra, do porto para a tempestade, de sagrado da inveja para a campanha do ódio, da clausura do silêncio para a soltura das línguas, do estado da invisibilidade para o de ver, e ser visto, de entre os ossos dos pais e avós, para entre os dentes dos êmulos e inimigos: enfim, da liberdade em que o tinha posto a morte, para o cativeiro e cativeiros da vida. (Vieira 158-159)

Ou seja: conforme a própria interpretação teológica de Vieira, a dor de ressuscitar foi, para Lázaro, muito mais lancinante do que a dor de morrer. Lembrando novamente de Saramago, é como se Vieira também escutasse as palavras de Maria de Magdala: "Ninguém na vida teve tantos pecados que mereça morrer duas vezes".

É claro que o "Sermão de Cinza" está vinculado à percepção cristã de que se deve viver em aceitação e desejo pela morte, e, ainda que o padre mencione alguns suicidas ilustres da Roma Antiga, sua pregação está muito distante de resvalar na condição suicida atribulada que aparece retratada em "Lady Lazarus". Mas, no que tange à figura de Lázaro e à ideia de ressurreição, o conceito geral se repete: ressuscitar não é sinal de triunfo ou glória, é a afirmação da dolorosa experiência do eterno retorno à vida. Considerar que Plath ou qualquer um de seus alter egos desejava a morte talvez seja um equívoco. Mas afirmar que ela desejava "morrer para ressuscitar" parece ainda menos plausível. Pode ser que esta não seja a interpretação mais ortodoxa, ou a única possível. Mas, considerando o quanto o tema do suicídio obcecava Plath - principalmente em seus últimos escritos -, e sua igual obsessão por Lázaro, parece-nos pouco provável que ela tenha realmente construído uma "mitologia de renascimento". O personagem bíblico, na obra da autora, atua como intensificador do problema do suicídio: como algo irresolvível, e não como algo superável.

Em "Lady Lazarus" há uma ideia de ciclo de morte a cada década: a primeira aos dez, a segunda aos vinte e a terceira, que está sendo contada pelo eu lírico, aos trinta. É com uma ironia ácida que comparamos as datas: poucos meses após escrever o poema, Sylvia Plath, com trinta anos de idade, acorda, na manhã do dia 27 de fevereiro de 1963, caminha para a cozinha, prepara um lanche para os filhos e veda a porta do quarto das crianças com toalhas. Em seguida anota em um bilhete o número de telefone de sua psicóloga, deixa em cima da mesa, e deita a cabeça no fogão após ligar o gás. O ciclo rompeu-se na terceira vez.

As palavras de Hilst retornam: "Lázaro, eu sou tua própria morte". Esta sentença, na versão hilstiana, é proferida por Cristo, e atua como o exato contraste daquela fala que outro Cristo, o de João, brada segundos antes de perpetrar o milagre: "Eu sou a ressurreição". Lázaro, reencarnado em muitos outros depois de seu primeiro retorno, já não consegue agarrar sequer uma sombra de otimismo. Lázaro sabe, ainda que pense não saber, sabe na própria carne a doença a carcomer os ossos, apodrecer os músculos, invadir os órgãos. Ao mesmo tempo, sabendo de sua própria morte, sabe também de sua própria angústia. Porque seja o ser diante da morte, seja aquele que carrega a própria morte, a angústia aloca-se nos poros, ventres e alma: o homem atordoa-se diante do relógio que perde o "tic tac" e hoje bate a ditar, repetidamente, uma ladainha de séculos: "lembra-te de que deves morrer": Memento mori. A cada poder-ser, como ditava Kierkegaard sobre Adão e o fruto, uma nova angústia. Não há como escapar do destino que o assola. O milagre não salva, não redime, não permite o salto no abismo.

O absurdo bate à porta e Lázaro abre, ora acompanhado de Rouah, ora em cima de um palco, e ainda ele sabe: o absurdo sou eu. O Lázaro que visitou a modernidade se aterroriza: ou vira palhaço de circo ou enlouquece. O show em eterno replay de Lady Lazarus é descrito com detalhes, mas pelas mãos de outra mulher: preso em um mosteiro do mundo moderno, ele não encontra saídas possíveis. A figura do homem crucificado pregada nas paredes o incomoda: "Pergunto novamente quem é. O velho monge, o único que me entende, diz que é o homem Jesus, que o homem Jesus está em tódas as paredes desta casa" (Hilst 104). Mas Jesus, para esse Lázaro, continua a conviver com suas irmãs, a andar por Betânia:

O Homem Jesus? Já lhe disse que Êle não é assim, que Êle não foi crucificado, e olhe, eu saberia se isso tivesse acontecido, eu tive muitos pressentimentos, mas agora tenho certeza de que êle está bem, porque se aconteceu o absurdo comigo, com Êle deve ter acontecido o mais sensato, e o mais sensato é festejar o Homem Jesus e colocar uma coroa de flóres sóbre Aquela cabeça e não uma coroa de espinhos. Quem teve essa idéia terrível? Flóres, flóres e não espinhos. (Hilst 104)

Quem responderá a ele que foram os homens que o mataram? O reviver do morto-vivo, colocado em um futuro (não tão) distante, faz com que a carga de angústia ecoe em nós mesmos. O homem que merecia flores hoje é retratado com espinhos, sua imagem deturpada está pregada em paredes de homens sem fé. Um dos monges tenta explicar o complicado da situação:

não te aborreças, mas... sabemos que Êle... que Êle nunca existiu, Êle foi apenas uma idéia, muito louvável até, mas... Êle foi apenas uma tentativa de... bem, se tudo corresse bem, essa idéia que inventaram, essa imagem, poderia crescer de tal forma que aplacaria definitivamente a fera dentro do homem. Mas não deu certo. Pelo contrário. Os homens não se comoviam com Jesus, viviam repetindo que muitos sofreram mais do que Êle, que Êle ainda era feliz, era feliz porque acreditava que era filho de Deus, e os homens que nascem e morrem a cada dia sabem que são filhos do homem com a mulher e não têm consólo algum, lutam para dar alimento, roupa e algumas alegria aos seus filhos e a si próprios. Lutam sempre. Vivem e morrem. É o que acontece aos humanos. Não há nada além disso. (Hilst 106-107)

Lázaro, grande símbolo do poder de Jesus sobre a Terra, da força divina sobre os homens, é agora arrebatado por um mundo sem Deus. A obra milagrosa desmente o milagre. Também em Hilst, no limite, o que resta é um show de circo, um embuste de mau gosto. Lázaro ressuscita, mais uma vez e sempre, sendo Lady Lazarus.

Encerramos o novelo que prendia a faixa ao pedaço de madeira roto. A trilha brancamarelada segue-nos até o presente momento, com as perguntas a interromper a garganta em nó. Do Evangelho de João seguimos até o século 20, a figura do morto-vivo resiste, ainda. Quanto mais próxima de nós, mais as faixas apertam o pescoço, os braços e pernas. A angústia cresce com o passar dos anos, vemos o abismo de Kierkegaard mas o salto continua não dado. O cavaleiro da fé participa do mesmo livro, mas é outro personagem, em outros tempos. Lázaro caminha sófrego, pútrido, em tempos remotos de desolação. Ouve a danse macabre incessantemente em seus ouvidos, a morte está sempre ao lado, mas há tempos ela perdeu a irreverência. O caminho para a morte continua vazio para seus passos em solidão. Até a próxima performance, o próximo ciclo, o próximo acordar em um barco à deriva ou na cama com Marta a seus pés. O show continua, a plateia aplaude a fênix: aborto às avessas que renasce, podre, viva, mais uma vez:

  • E de repente o vinho virou água

  • E a ferida não cicatrizou

  • E o limpo se sujou, e no terceiro dia

  • Ninguém ressuscitou. (Fátima, Aborto Elétrico)

Obras citadas

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1As citações do Evangelho de João foram retiradas da edição brasileira da Bíblia de Jerusalém, cf. Obras citadas.

2O poema permite uma leitura muito próxima da biografia da escritora, conforme explanaremos adiante. O eu lírico, que narra suas mortes, retoma momentos da vida da própria Sylvia Plath, tornando borrados os limites entre a vida e a ficção. Para um estudo mais aprofundado sobre o tema, ver Amaral ("A arte de morrer").

3Vale notar que a palavra de língua inglesa striptease (comumente vinculada ao ato de se despir sensualmente diante de outra pessoa ou público) carrega, em sua etimologia, o termo strip - cuja tradução literal mais corriqueira para o português é, justamente, "faixa". Dessa forma, a aparente provocação (tease) feita por Sylvia Plath, ao associar o desenfaixar do corpo ressuscitado de Lázaro com um striptease, nada mais é do que o exercício de uma mente que possui conhecimento aguçado sobre os processos significativos de sua língua materna. No limite, mesmo que metafórico, todo striptease é um desfazer-se de ataduras. Ou, para concordar com a rebeldia sugestiva de Plath, quando Cristo pediu que tirassem as faixas que cobriam o corpo de Lázaro, ele estava pedindo, quase literalmente, para assistir a um striptease.

4São os títulos dos textos que integram o volume Fluxo-Floema.

5Ainda que apresente uma diferença mínima na grafia, essa palavra empregada por Hilst, Rouah, foi provavelmente inspirada na ruah de origem hebraica, ~nn._ Conforme Gabel e Wheeler (215), o termo em questão "pode significar 'vento, 'fôlego' ou 'espírito'; não sabemos com certeza qual desses sentidos o autor de Génesis 1,2 tinha em mente ao escrever que o ruah de (ou vindo de) Deus movia-se acima do abismo primevo. Mesmo quando o contexto não dá certeza, os tradutores têm de escolher algum sentido para pôr no seu texto". Trata-se de uma ressalva prudente, mas o fato é que uma longa tradição de exegetas associa as inúmeras ocorrências bíblicas da palavra ruah ao Espírito de Deus, e mesmo ao Espírito Santo que comporia a Trindade Divina (é de relevância óbvia para essa interpretação o fato de a maioria das ocorrências bíblicas do termo aparecerem junto à palavra Elohim - Deus -, na seguinte forma: "nrrx^íPD). Julgamos esta digressão necessária para fazer frente a uma possível interpretação do Rouah hilstiano como sendo o Demónio ou coisa que o valha. Tanto o fato de o narrador se referir a ele como "o maldito" quanto sua caracterização física (uma criatura animalesca, de corpo peludo, sexo volumoso e pequenos olhos acesos) parecem corroborar a índole demoníaca de Rouah. Além disso, ruah aparece algumas vezes na Bíblia também para indicar um "espírito maligno" (הָוהְי תֵאֵמ הָעָר־ַחוּר). Por outro lado, há pelo menos três argumentos que sustentam nossa interpretação de que Rouah é, no texto analisado, uma encarnação subversiva do Espírito Santo. O primeiro e mais consistente parte das próprias palavras do narrador, quando ele diz "Aquêle Homem Jesus, Aquêle Homem Eu Mesmo, Aquêle Homem o Outro, Aquêle Homem Rouah" (Hilst 92). De forma estilizada, o que Lázaro está declarando aqui é que Jesus "Aquêle Homem" é, a um só tempo, Filho/humano (Eu mesmo), Deus (o Outro) e Espírito Santo (Rouah), i.e., Jesus é a encarnação terrena da Trindade. Em segundo lugar, em termos mais contextuais, é relevante o fato de o segundo volume em prosa publicado por Hilda Hilst, na sequência de Fluxo-Floema, ser intitulado Kadosh (em sua versão inicial de 1973 o título era grafado Qadós). Também de origem hebraica, significando "sagrado" ou "santo", a palavra em questão pode ser acrescentada ao emprego de Rouah, corroborando uma tendência de Hilst no reconhecido trato com o sagrado em sua obra. Por fim, é preciso considerar o quanto a escritora opera uma subversão desse elemento sagrado (basta ver a quantidade de nomes que ela constantemente atribui a Deus ao longo de seus muitos poemas e narrativas). Nesse sentido, apresentar uma imagem subvertida do Espírito Santo parece mais ao gosto de Hilst do que fazer do Demónio o responsável pela ressurreição de Lázaro.

6 Para interpretações adicionais sobre o Lázaro de Hilst, ver André.

7Referência ao romance A Redoma de Vidro, de Sylvia Plath. "Eu sou. Eu sou. Eu sou" (177) é a reposta que o coração pulsante, e angustiado, da protagonista Esther Greenwood, alter ego de Plath, devolve a ela após uma de suas tentativas de suicídio.

8Acreditamos ser possível a defesa da existência de uma heteronímica na obra kierkegaardiana, mas manteremos aqui, por convenção, o termo "pseudónimo" para fazer referência às múltiplas vozes autorais por ele elaboradas.

9 Conforme declarou em mais de uma entrevista, Hilda Hilst considerava A morte de Ivan Ilitch uma das novelas mais perfeitas já escritas.

10 Tradução própria.

11 Conforme o verso de "Lady Lazarus" citado antes.

12Ver, por exemplo, a cartilha Suicídio: informando para prevenir, elaborada pela Associação Brasileira de Psiquiatria em 2014, onde se lê sobre a "ambivalência" do sujeito suicida: "o desejo de viver e de morrer se confundem no sujeito. Há urgência de sair da dor e do sofrimento com a morte, entretanto há o desejo de sobreviver a esta tormenta" (ABP 25); ou então o volume Suicídio: Fatores inconscientes e aspectos socioculturais: uma introdução, de R. M. S. Cassorla (30): "o indivíduo que quer morrer deseja também viver. Parte da pessoa quer deixar de existir e outra parte deseja continuar viva. Essa ambivalência faz parte do conflito, tanto de forma consciente quanto—e principalmente— inconsciente".

13Tradução própria.

14O comentário infeliz do autor se constrói nos seguintes termos: "Há romances, peças e lendas em abundância que envolvem o suicídio - suicídio na fantasia. Mas, surpreendentemente, há pouco material científico sobre o tema" (Menninger 13). Tradução própria.

15Tradução própria.

16Tradução própria.

17 Tradução própria.

Cómo citar este artículo (MLA): Amaral, Lara Luiza Oliveira, y Willian André. "'Lázaro: eu sou a tua morte': imagens de Lázaro em Sylvia Plath e Hilda Hilst". Literatura: teoría, historia, crítica, vol. 24, núm. 1, 2022, págs. 165-185.

Sobre o autores

Lara Luiza Oliveira Amaral é Mestra em Estudos Literários pela Universidade Estadual de Maringá (UEM) e Especialista pela Universidade Estadual do Paraná (IJNESPAR), também em literatura. Atualmente é doutoranda (bolsista CAPES) em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), desenvolvendo pesquisas sobre diários de escritoras suicidas. Dentre suas publicações estão artigos em periódicos acerca do diálogo entre literatura, memória e suicídio, além da organização do livro Literatura & Suicídio (2020).

Willian André é Doutor em Estudos Literários pela UEL (2016) e professor adjunto do Colegiado de Letras da UNESPAR, campus de Campo Mourão. Desenvolve pesquisas sobre literatura e suicídio desde 2016. Foi co-organizador do livro Literatura & Suicídio (Editora FECILCAM, 2020) e do dossiê temático "Morrer pelas próprias mãos: literatura e suicídio" (Revista Criação & Crítica, 2019), além de ter organizado o Littératuricides: 1° Seminário Nacional de Estudos sobre o Autoaniquilamento na Literatura (2019). Possui vários artigos publicados sobre o tema da morte voluntária em periódicos qualificados.

Recebido: 21 de Fevereiro de 2021; Aceito: 08 de Setembro de 2021; Publicado: 01 de Janeiro de 2022

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