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Literatura: Teoría, Historia, Crítica

Print version ISSN 0123-5931

Lit. teor. hist. crit. vol.24 no.1 Bogotá Jan./June 2022  Epub Mar 09, 2022

https://doi.org/10.15446/lthc.v24n1.93623 

Artículos

Sobre o realismo socialista brasileiro de Jorge Amado

Sobre el realismo socialista brasileño de Jorge Amado

On Jorge Amado's Brazilian Socialist Realism

Fabio Akcelrud Durão1 

Camila Peruchi2 

1 Universidade Estadual de Campinas, Campinas, Brasil fadurao@unicamp.br

2 Universidade Estadual de Campinas, Campinas, Brasil camilaperuchi@gmail.com


Resumo

Neste artigo, interpretamos os primeiros romances de Jorge Amado como um exemplo privilegiado do realismo socialista brasileiro. Argumentamos que ele é caracterizado por uma mistura de negatividade na descrição da opressão social e de positividade na essência redentora do popular. Sobre o primeiro, pode-se mencionar a exploração de Amado do mundo dos pobres, seu estilo coloquial e a descrição vívida da dominação capitalista; sobre o último, um investimento transcendente no povo, no heroi e no partido. A conclusão é que essa combinação gera uma mitologia brasileira que ajuda a explicar a virada de Jorge Amado em sua escrita pós-comunista.

Palavras-chave: essencialismo; Jorge Amado; negatividade; realismo socialista brasileiro

Resumen

En este artículo, interpretamos las primeras novelas de Jorge Amado como un ejemplo privilegiado del realismo socialista brasileño. Argumentamos que este se caracteriza por una combinación de negatividad en la descripción de la opresión social y de positividad en la esencia redentora de lo popular. Sobre lo primero, se puede mencionar la exploración que Amado hace del mundo de los pobres, su estilo coloquial y la descripción vivida del dominio capitalista; sobre lo último, la apuesta trascendente por el pueblo, el héroe y el partido. La conclusión es que esa combinación genera una mitología brasileña que ayuda a explicar el giro de Jorge Amado en sus escritos poscomunistas.

Palabras clave: esencialismo; Jorge Amado; negatividad; realismo socialista brasileño

Abstract

In this article we interpret Jorge Amado's early work as a privileged example of Brazilian socialist realism. We argue that it is characterized by a mixture of negativity in the description of social oppression and positivity in the redeeming essence of the popular. To explain the former,we discuss Amado's exploration of the world of the poor, his colloquial style, and vivid depiction of capitalist domination; as for the latter, we approach a transcendent investment in the people, the hero, and the party. The concluding claim is that this combination generates a Brazilian mythology that helps to account for Amado's turn in his post-communist writing.

Keywords: essentialism; Jorge Amado; negativity; Brazilian socialist realism

I

OREALISMO SOCIALISTA, COMO ESCLARECE CLARK (27), não existia enquanto tal até ter sido apresentado ao público, em 1932, durante um discurso feito por Ivan Gronsky, presidente do Comité Organizador da recém-fundada União dos Escritores. Enquanto método e teoria, o realismo socialista apresentava diretrizes gerais para a literatura, pretendendo adequá-la à nova era socialista, ainda que, para isso, se baseasse em características de obras já produzidas.1 Exigia, grosso modo, a combinação da realidade prosaica, a verossimilhança do já existente realismo proletário, com perspectivas heróicas, mas gradativamente passou a afirmar a necessidade de se enfatizar mais o heróico do que o real. O compromisso de expressar, nas artes, a forma futura do homem culminava também na obrigação de monumentalizá-lo e romantizá-lo2 e a transformação do que era, até meados da década de 1920, uma postura artística espontânea em política oficial de Estado indica uma sistematização maior de toda a cultura soviética da qual o escopo deste artigo não poderia dar conta.

Ao contrário do que se pode imaginar, no entanto, o realismo socialista não foi um fenómeno literário restrito à União Soviética. A crença na capacidade transformadora da literatura, concebida como um instrumento eficaz para a construção de modos de vida alternativos e para a aproximação com as massas, mobilizou a produção artística de muitos escritores que recorreram a ele mesmo em países que não tinham nem a revolução no horizonte, nem uma política cultural estritamente socialista. O fato de que, após a Revolução de Outubro, vários nomes da literatura mundial se posicionaram a favor do Socialismo, somado aos avanços na cultura impressa, permitiram ao realismo socialista circular além de seu ponto de origem linguístico e cultural, ampliando o seu raio de influência.3 Esses fatores poderiam passar despercebidos não fosse a visibilidade que lhes conferem os desenvolvimentos recentes em torno do conceito de literatura-mundo (world literature). Cada vez menos restrita a um cânone de obras da Europa Ocidental, a literatura-mundo passou a se referir também a um modo de circulação e de leitura de uma série de textos provindos de sistemas literários diferentes. Damrosch é um dos que amplia o escopo, compreendendo como literatura-mundo "todas as obras literárias que circulam além de sua cultura de origem, seja em tradução ou na língua original" (4),4 acrescentando, porém, que "circular" não significa apenas sair brevemente de seu local de origem, mas ser "ativamente presente dentro de um sistema literário além de sua cultura original" (5). Essa nova concepção permite delimitar a partir de um ângulo inédito o que é ou o que pode ser considerado literatura-mundo, retroagindo sobre as produções literárias do passado. O movimento em retrospecto torna possível, portanto, a reconsideração do realismo socialista como subsistema, uma forma de vínculo comum entre diferentes literaturas nacionais que passaram a corresponder, ainda que de diferentes formas, a uma mesma ideia.

Como uma espécie de fio condutor da imaginação literária ao redor do mundo, o realismo socialista não significou resultados estéticos homogéneos e uniformes; ao contrário, os exemplos concretos mostram que ele diferiu significativamente de país para país em termos tanto de forma, quanto de conteúdo. Compostas por um corpus literário advindo de sociedades amplamente díspares, com história e referéncias culturais distintas, as variações do realismo socialista, longe de o invalidarem como literatura-mundo, fazem, na verdade, o justo oposto: reafirmam-no como uma fonte comum a ser necessariamente adaptada para se tornar capaz de retratar as especificidades de cada diferente realidade que pretendeu representar.

II

Esta é uma representação estereotipada com a qual, sem dúvida, o leitor estará familiarizado: o realismo socialista como subliteratura, irremediavelmente marcado pela censura e pelo controle. Na melhor das hipóteses, imaginação abortada; na pior, pura propaganda. Pode-se certamente admitir a verdade dessa visão, contanto que se tenha também o rigor de evitar o erro de assumir a liberdade imediata em outros tipos de literatura, o que é algo que surge quase naturalmente como um resultado retórico e performativo: permanecer automaticamente no mundo das restrições acaba por projetar um universo de possibilidades desenfreadas. Por isso, é mais proveitoso considerar o realismo socialista lado a lado com sua contraparte geopolítica, o realismo capitalista, concebido não tanto no sentido de Fisher, de um desaparecimento problemático de alternativas ao status quo, mas como uma espécie de escrita organizada em torno de sua própria vendabilidade. O realismo capitalista é o tipo de literatura que nos parece a mais normal e aceitável, porque naturalizamos o pressuposto de que as coisas só existem para serem vendidas. Em suma, então, apesar de todas as diferenças, pelo menos metodologicamente, o Partido e o mercado podem ser colocados lado a lado como duas estruturas de restrição, um gesto que leva, por sua vez, a um deslocamento das oposições binárias: em vez daquela de realismo socialista versus liberdade, encontramos o contraste entre dois tipos de limitação, talvez vagamente semelhante ao que Guy Debord chamou de espetáculo concentrado versus espetáculo difuso. É possível, claro, formar ainda outra distinção analítica, agora confrontando essas duas formas de controle com o que pode realmente representar o fluxo livre da imaginação narrativa e da razão estética, o reino da autonomia; isto, no entanto, não será nossa preocupação aqui.5

No Brasil, o realismo socialista, como era de se esperar, teve suas peculiaridades e excentricidades. Como qualquer outro fenómeno literário originado no exterior, não póde ser simplesmente transposto para cá e, no processo de sua adoção, teve que ser adaptado.6 Ao contrário da URSS, não havia no Brasil uma revolução a ser defendida; sinais de opressão e de dominação de classe, no entanto, eram abundantes e a injustiça onipresente. Como na Rússia pré-revolucionária, a industrialização coexistiu com fortes resíduos de servidão: o proletariado foi um protagonista relativo e teve que compartilhar o protagonismo social com o camponês. O processo histórico central da história brasileira, a terrível e persistente experiência de colonização e de escravidão, não teve, porém, paralelo no passado russo. Além disso, o Partido Comunista Brasileiro não possuía poder suficiente para propor e implementar sua própria política cultural; embora tenha funcionado como uma instância organizadora surpreendentemente presente para seu tamanho relativamente pequeno, encorajando certas obras e autores e criticando outros. Sua força, portanto, tinha um alcance limitado, o que significa que o horizonte normativo para um romance realista socialista não foi tanto imposto de fora, como algo pronto, mas sim construído na própria consciência dos escritores, a partir do senso de dever e da prática de escrever e de ler uns aos outros.7 Em comparação com sua origem soviética, o realismo socialista brasileiro era, em suma, mais orgânico, contribuindo para e sendo influenciado por uma cultura comunista nativa.8 O realismo socialista soviético poderia, então, ser uma fonte, mas não um modelo e, se a revolução não era algo a ser preservado, ela ainda precisava ser construída. O movimento fundamental para a adaptação do realismo socialista no Brasil foi substituir aquilo que na URSS estava sendo concebido como o novo homem, o arauto de um novo mundo, por algo latente na realidade brasileira, algo que poderia representar a semente de uma sociedade comunista por vir. Com isso em mente, podemos avançar para nosso primeiro argumento, a saber, que a estrutura narrativa decisiva que permite a aclimatação do realismo socialista no Brasil reside na combinação de um componente negativo -a representação da opressão social em suas várias formas- com um elemento positivo que promete a sua resolução, o fim do conflito e da miséria.

III

Jorge Amado (1912-2001) é, sem dúvida, um dos principais nomes da literatura brasileira. Muitos fatores explicam o alcance de tal estatuto. Em primeiro lugar, há o volume da sua produção: entre a década de 1930 e a de 1990, Amado escreveu vinte e três romances,9 um livro de poesias,10 um de contos,11 um de crónicas,12 dois de memórias,13 um guia,14 uma peça de teatro,15 uma narrativa de viagens,16 uma fábula,17 dois livros infanto-juvenis18 e duas biografias.19 A despeito de evidentes particularidades, todas essas obras conferiam, em conjunto, ênfase ora à denúncia social, ora ao exótico da cultura popular. Por um lado, retratavam as injustiças de um país que ansiava por ser conhecido ao mesmo tempo em que despertava curiosidade: os desmandos dos coronéis, a disputa de terras, o trabalho semi-escravo, a miséria, etc. Por outro, revelavam também o avesso colorido desse lado obscuro, aquilo que Alfredo Bosi (406-407) denominou de "pitoresco, gorduroso, apimentado do regional". Essa combinação inusitada permitiu a composição de uma imagem penetrante de Brasil, que acabou fortemente veiculada: as obras de Amado foram traduzidas para quarenta idiomas e publicadas em cinquenta e cinco países. Foram também adaptadas para cinema, TV e teatro. Além disso, Jorge Amado foi o primeiro escritor brasileiro a alcançar sucesso comercial nos Estados Unidos (Lowe).

Ao contrário do que tamanha repercussão poderia fazer supor, nenhum outro escritor realizou o projeto de um realismo socialista brasileiro de maneira tão ampla e consequente como ele. Não é por acaso, portanto, que, na própria União Soviética, Jorge Amado tenha sido amplamente traduzido, tornando-se um dos escritores latino-americanos mais lidos. Em 1952, Amado recebeu o premio Stalin Internacional, posteriormente renomeado de Prêmio Lenin da Paz. No Brasil, Amado dirigiu a Coleção "Romaces do Povo", publicada entre 1953 e 1956 pela Editorial Vitória, vinculada ao Partido Comunista Brasileiro. Dos dezenove títulos publicados pela Coleção, onze eram de autores soviéticos.20 A fama atual de Jorge Amado, adquirida por meio de uma carreira longa e ininterrupta, que incluiu em seu caminho a renúncia declarada do socialismo, e que o tornou o mais conhecido escritor brasileiro depois de Paulo Coelho, pode facilmente ofuscar esse debate. De fato, as críticas ao seu trabalho raramente se concentram em sua fase socialista inicial, quase sempre descartada como equivocada e insignificante, posição que desafiaremos ao afirmar no final deste artigo que o realismo socialista brasileiro de Amado foi constitutivo para a formação do aclamado autor posterior.

Certamente, houve outras tentativas talvez mais claras e imediatas de escrever uma literatura proletária no Brasil, como O gororoba: cenas da vida proletária no Brasil (1931), de Lauro Palhano, e Parque Industrial (1933), de Patrícia Galvão, mas tais esforços tendiam a ser mais esporádicos e descontínuos, já no caso de Amado encontramos um empenho em direção a uma prática de escrita socialmente orientada, que pode ser considerada como se originando no realismo socialista de estilo soviético. Tendo isso em vista, o corpus que subsidiou a escrita deste artigo foi composto pelo conjunto dos romances politicamente engajados de Amado, incluindo também seus dois extremos: seu primeiro livro, O país do Carnaval (2011) [1931], um texto ainda não dedicado à causa do comunismo; e Gabriela, Cravo e Canela (2012) [1958], não mais centrado nele. O primeiro é um caso interessante; composto aos 19 anos e rejeitado posteriormente por Amado, foi autoconscientemente escrito para provar um ponto, na medida em que abre com uma explicação: "Diante da grandiosidade da natureza, o brasileiro pensou que isso era um circo. E virou palhaço" (Amado, O País do Carnaval, 10).

O livro conta a história de Paulo Rigger, filho de um rico dono de uma plantação de cacau que, com a morte do pai, volta a Salvador após uma estada de sete anos em Paris. No Brasil, Rigger conhece um grupo de cinco intelectuais locais, com os quais se envolve em intermináveis discussões sobre felicidade, Deus, amor, religião, política, ética, filosofia, patriotismo, amor, vida e Brasil. A abundância de diálogos, ultrapassando de longe a narração, transmite com força uma busca de sentido como uma condição necessária não só para a própria vida, mas também, e mais importante, para o país. Depois de muitas desilusões e soluções pessoais divergentes -nenhuma delas satisfatória, nenhuma delas capaz de reconciliar o coração e a mente-, Rigger decide retornar à França, o que só pode ser visto como um gesto de renúncia. Tanto a chegada como a partida ocorrem durante o carnaval; no último capítulo do romance, somos informados de que Rigger

resolveu voltar para a Europa. Quando aportara ao Brasil, elegante, cético, demolidor, carregado de sonhos, pensava em realizar grandes coisas. Seria escritor conhecido, político eminente. Fracassara... Estava apenas um insatisfeito, infeliz, depois de ter sofrido uma tragédia amorosa e haver tentado suicidar-se. Voltaria a Paris para esquecer. Quem sabe se não ficaria novamente calmo? Leria muito. Talvez a filosofia [...]. (Amado, O País do Carnaval 144)

O romance termina com o esforço de Rigger para romper a multidão, que dança e celebra freneticamente, e alcançar seu barco, que está prestes a partir:

Alcançou o navio no último momento. Poucos passageiros, ingleses e argentinos a admirar a cidade que se vestia de treva. A noite se apossara do Rio de Janeiro. Paulo Rigger, no tombadilho, comparava a cidade carnavalesca, envolta em trevas, à sua alma. (Amado, O País do Carnaval 146)

É significativo que neste romance o carnaval seja desprovido de todas as associações positivas que a cultura popular viria a adquirir na obra posterior de Amado. Aqui, o carnaval funciona tanto como um contraste aos sentimentos de Rigger, quanto como uma acusação da superficialidade do Brasil. O fracasso do primeiro é também o do último e não há mais esperança ou solução visível no horizonte.

Quando abrimos Cacau, publicado apenas dois anos depois de O País do Carnaval, uma mudança radical acontece. Antes de começar a narrativa, lemos a seguinte nota: "Tentei contar neste livro, com um mínimo de literatura para um máximo de honestidade, a vida dos trabalhadores das fazendas de cacau do sul da Bahia. Será um romance proletário?" (Amado, Cacau 9). A pergunta pode ser interpretada em dois níveis ligeiramente diferentes, pois pode expressar tanto incerteza quanto à sua própria categorização devido ao fato de a narrativa se passar em um espaço rural, quanto pode se referir ao romance como um todo, perguntando se a realidade dessa parte do Brasil foi, afinal, fielmente transmitida. De qualquer forma, é revelador que Jorge Amado questione o possível estatuto de romance proletário de seu livro ao invés de simplesmente reivindicá-lo. Essa dúvida chama atenção para o fato de que o realismo socialista brasileiro era, de fato, um projeto em construção.

Seja como for, Cacau inaugura os vinte anos de experimentos de Amado no que merece ser considerada uma versão brasileira do realismo socialista e que culmina na sua obra mais militante, a trilogia Os Subterrâneos da Liberdade. Essa perspectiva socialista será abandona a partir de Gabriela, Cravo e Canela. Como dissemos, discutiremos brevemente essa transição no final deste artigo. Para isso, precisamos primeiro caracterizar o universo ficcional realista-socialista de Amado focando na tensão entre duas forças que se estabelecem na forma como o autor lida com a realidade social; por um lado, esta é cheia de sofrimentos resultantes de estruturas de dominação tornadas bem visíveis pela representação; por outro, a realidade representada contém em si as sementes de sua própria superação. Esses dois vetores serão analisados a partir de cinco componentes narrativos interrelacionados, mas de níveis composicionais bastante heterogêneos. De maneira resumida, argumentaremos que a visão realista e crítica da sociedade brasileira traz conquistas literárias que não podem ser ignoradas, ao passo que a suposição de que há algo garantindo como que a priori o aniquilamento da opressão ocasiona sérios inconvenientes estéticos.

IV

Jorge Amado deve ser creditado por ter contribuído significativamente para ampliar o horizonte de representação da literatura brasileira ao tornar visível uma parcela da realidade social até então praticamente ignorada. É verdade que, a rigor, podemos encontrar exemplos anteriores de poemas e romances brasileiros que retratavam os pobres e suas condições de vida, sendo o caso mais óbvio provavelmente o da importação do Naturalismo, como no já célebre O Cortiço, de Aluísio Azevedo. Embora este romance também tenha abordado uma parte da realidade considerada indigna de representação, a ficção de Jorge Amado se diferencia da de Azevedo em pelo menos quatro aspectos. O primeiro deles é a brutalidade da descrição: privação e indigência são pintadas com as cores mais nítidas possíveis. No trecho a seguir, de Suor, por exemplo, está o mendigo Cabaça:

Ele também morava no 68, na Ladeira do Pelourinho e, como os ratos, era inquilino gratuito. Dormia debaixo da escada, enrolado na colcha sujíssima que o cobria havia dois anos sem ver água, a não ser quando molhava nas poças de mijo. Tinha rombos feitos por dentes de ratos. (Amado, Suor 190)

Aqui, a vontade de trazer para o mundo da literatura todos os horrores da pobreza extrema se associa a uma perspectiva narrativa simpática. Diferentemente do que ocorre em O cortiço, portanto, os destituídos não são vistos como outros, como objetos de curiosidade científica, preocupação moral ou piedade religiosa, por exemplo; em vez disso, o narrador os apresenta como seres humanos em um mundo que possui ao menos a dignidade de não ter que se justificar.

Além disso, no universo narrativo de Amado, o prazer não éproblemático: os personagens desfrutam plenamente de seus corpos como fontes de satisfação na música, na dança, em todos os tipos de comida local, no álcool (daí a onipresença da cachaça) e, principalmente, no sexo, que quase nunca é visto através das lentes de culpa. Essa disponibilidade sempre presente da alegria define a ficção de Amado como o próprio antípoda do "tédio" francês [ennui] ou do "cansaço do mundo" alemão [Weltschmerz] e, em grande medida, explica o sentido de "vida" que muitos críticos contemporâneos encontraram nas suas primeiras obras, como Camus, que, ao comentar Jubiabá, considerou-o "magnífico e deslumbrante", "fecundo"; segundo ele, a história "é a busca apaixonada de um ser elemental à procura de uma revolta autêntica" por meio da qual "mais uma vez os romancistas das Américas nos fazem sentir o vazio e o artifício de nossa própria ficção" (Camus citado en Aguiar 133-134).

O último traço desse universo narrativo para o qual gostaríamos de chamar a atenção é a incorporação na ficção amadiana da cultura e da religião afro-brasileira, como Iemanjá em Mar Morto, ou as macumbas em Jubiabá. Tratava-se de questões completamente inexploradas na ficção brasileira nos anos 1930 e 1940. O candomblé estava à margem da legalidade e frequentemente era vítima de violência policial aberta. Jorge Amado fez com que a cultura afro-brasileira desempenhasse um papel central em sua ficção ao combinar o autenticamente popular com a magia, mediando, assim, a dominação e sua supressão por algo transcendente e pertencente ao povo. Aqui encontramos uma contribuição local definidora, pois, nos termos de Franco (4), "o realismo socialista na América Latina sempre esbarrou em realidades de raça, subdesenvolvimento e no legado do colonialismo".

Outro aspecto narrativo que merece destaque é o estilo de Amado. Sua prosa inicial deve ser considerada no contexto dos desenvolvimentos do modernismo brasileiro. Em 1922, a Semana de Arte Moderna rompeu com a concepção até então dominante do que deveria ser a escrita literária. Ao invés dos padrões gramaticais da língua portuguesa, como no exemplo da posição dos pronomes, os primeiros modernistas lutaram por um tipo de escrita que não só acomodasse, mas que também expressasse o jeito tipicamente brasileiro de vivenciar a língua nativa, o que era também uma forma de aproximar a escrita da fala, democratizando a literatura. A chamada "geração de 1930" na historiografia literária brasileira ampliou esse impulso. No caso de Amado, ele é marcado pela ausência de qualquer traço polêmico. Ao contrário dos primeiros modernistas, portanto, a coloquialidade não aparece como uma conquista com traços de épater le bourgeois, mas adquire certa neutralidade e transparência. A naturalização do cotidiano na escrita corresponde estilisticamente àquela recusa já mencionada por parte de sua ficção em considerar os pobres como outros, como formas de alteridade. Características significativas dessa naturalização incluem o uso oral de pronomes (em português a posição deles é um claro marcador de formalidade), o vocabulário regionalizado, o ritmo regular de frases e o senso de extensão. Essas marcas explicam a ideia de que

a opinião sobre a habilidade de Amado como romancista muda de forma bastante dramática se considerarmos obras como Tenda dos Milagres, Os Velhos Marinheiros ou A Morte e A Morte de Quincas Berro D'Àgua não como exemplos do tradicional romance realista, mas sim como exemplos do que podemos chamar de um novo gênero, o romance oral, ou a tradição oral reconstituída na forma de romance. (Brower et al. 2)

As obras mencionadas aqui são posteriores, no entanto, esse impulso fica perceptível desde muito cedo.

Ao nos voltarmos para o segundo grupo de aspectos narrativos do realismo socialista brasileiro de Amado, passamos de uma esfera de denúncia para uma de afirmação. A afirmação se deve ao fato de que, em sua ficção, o reconhecimento do mal social é reforçado pela crença na possibilidade inexorável, até mesmo intrínseca, do advento do comunismo. Em sua visão de mundo, o Brasil não era apenas receptivo, mas criava por si mesmo o germe de sua própria sociedade comunista. É interessante destacar aqui um nó lógico tipicamente presente na literatura engajada, pois Amado postulou a existência de uma realidade cuja criação ele se esforçou para conceber com a sua escrita. Ou seja, representação e ação se interpenetravam, pois, ao assumir e ao descrever uma compatibilidade inerente entre o comunismo e a realidade brasileira, Amado já fomentava a criação do mundo comunista que sua visão pressupunha.

A primeira característica que vale a pena investigar sob essa perspectiva é a natureza inequívoca da estruturação moral da ficção inicial de Amado. A diferença entre o bem e o mal é sempre visível: eles nunca se misturam, vacilam ou mudam de um para outro. O reconhecimento do mal se torna, assim, transparente e desaparece como tal. O mundo, afinal, parece em "ordem". Se mencionamos antes como traços narrativos centrais para a denúncia a expansão do âmbito da representação, a construção de uma escrita coloquial-neutra e a representação da opressão social, a estratégia decisiva agora reside no uso particular que Amado faz do discurso indireto livre. O procedimento composicional por meio do qual o narrador penetra na mente do personagem, revelando seus processos de pensamento, é a principal técnica utilizada em seus romances. Porém, uma vez que o mundo moral é definido a priori, aquilo que poderia nos dar acesso a um fluxo de consciência, apenas nos apresenta considerações bem organizadas. Com isso, os personagens parecem ser marionetes do narrador, totalmente submetidos a um sistema de valores pré-estabelecido. Nesse sistema, o Bem tem três portadores interligados, todos eles imbuídos de uma essência transcendente nunca reconhecida por Amado, que os vê como parte da realidade concreta. Eles são o Povo, o Herói e o Partido.

O primeiro é o terreno de onde emerge a força vital de resistência. A vida participa direta e imediatamente do Povo de tal forma que ele se torna indistinguível da própria natureza. Essa metafísica do Povo pode ser encontrada em todas as obras socialistas realistas de Amado, mas é mais claramente evidenciada em Mar Morto, seu romance mais simbólico e lírico dessa fase. Um dos muitos exemplos pode ser encontrado a seguir. Um navio não consegue atracar devido a uma forte tempestade e Godofredo, ele próprio um comandante de navio que tem dois filhos a bordo, oferece dinheiro a quem resgatá-lo. Guma, o personagem principal, está disposto a arriscar sua vida:

Ele mesmo não sabe bem por que afronta assim a tempestade. Não é, com certeza, pelo dinheiro. [... ] Não é tampouco porque Godofredo tem dois filhos no 'Canavieiras' e chora como uma criança abandonada. [...] É mesmo porque vem um apito triste do navio, um pedido de socorro e a lei do cais manda que se atenda. Assim Iemanjá ficará satisfeita com ele e, se voltar com vida, dará a mulher que lhe pediu. (Amado, Mar Morto 62)

O que motiva o conflito aqui é o mito, assim como é o senso de comunidade que o determina. Em Mar Morto, a predisposição para a ação heroica pressupõe também uma relação direta entre esforço e recompensa via religião e entre auto-sacrifício e reconhecimento público, via comunidade.

A força vital do Povo está, assim, concentrada no Heroi, um ser humano com qualidades morais intrínsecas e habilidades externas que o colocam como um exemplo a ser admirado e seguido. Todos os primeiros romances de Amado contêm personagens de integridade e de retidão individual imaculadas - o que não exclui nem mesmo a esfera do roubo, como em Capitães da Areia - , mas, acima de tudo, com um talento natural e irresistível para a liderança. Os casos mais extremos podem ser encontrados nas duas semi (ou pseudo) biografias escritas sobre o poeta do século xix Castro Alves e sobre o líder comunista Luiz Carlos Prestes. Essas obras são chamadas de ABCS, uma versão da literatura de cordel, versos populares anónimos publicados em livros pequenos e baratos vendidos em feiras e adequados para serem cantados e recitados. Tanto em ABC de Castro Alves como em O Cavaleiro da Esperança, Amado se dirige repetidamente a uma ouvinte, uma negra, para marcar o caráter situado e oral da narrativa. É verdade que, escrito durante a ditadura do Estado Novo, O Cavaleiro da Esperança teve o objetivo declarado de popularizar a campanha de anistia aos presos políticos e ao próprio Prestes; ainda assim, o que acontece na obra é apenas um exagero, não uma mudança qualitativa em relação aos outros romances de Amado da mesma época. O livro é uma promessa:

Então eu te prometi contar a história do Heroi, aquele que nunca se vendeu, que nunca se dobrou, sobre quem a lama, a sujeira, a podridão, a baba nojenta da calúnia nunca deixaram rastro. E como ele é o próprio povo sintetizado em um homem, é certo que o povo nem se vendeu nem se dobrou. (Amado, O Cavaleiro da Esperança 10-11)

Segundo Amado, o motivo mais importante que o levou a escrever este livro foi

o meu amor ao povo, ao seu heroísmo, à sua beleza. Como escritor tenho uma enorme dívida para com o povo. Tudo de belo e de forte que possam ter meus livros eu o aprendi com o povo. E com ele aprendi a amar Luiz Carlos Prestes. (17)

Quanto ao carisma quase sobrenatural de Prestes, a seguinte citação, embora um pouco longa, é exemplar. Nela, Amado está descrevendo a campanha de guerrilha de Prestes no interior do Brasil:

Dizem que, quando um soldado era ferido de morte e compreendia que poucos minutos lhe restavam de vida, ao lhe perguntarem os companheiros e oficiais qual seu último desejo para satisfazê-lo, ele como todos os demais, repetia: - Quero morrer com o general a meu lado. [...]

Morrer fitando-o, assim não via mais as terras agrestes e abandonadas, não via mais as populações famintas de onde o soldado saíra. Não via mais a miséria do presente. Nos olhos ardentes de Prestes via o futuro livre, aquelas terras ricas e fecundas abertas na fartura de todos. [...] Morrer fitando Luiz Carlos Prestes, a mão moribunda entre as suas mãos amigas. Esse aperto de mão que afasta todo o medo. Alegria infinita de morrer ao lado do Herói, conversando com ele, imaginando com ele o futuro melhor de todos os humanos (Amado, O Cavaleiro da Esperança 200-201)

O terceiro elemento da positividade é o Partido, o foco da trilogia Subterrâneos da Liberdade que, como dissemos, é a produção de Amado. O romance alterna em seus capítulos o mundo dos ricos, marcado pelo desprezo pelas coisas brasileiras e pela rendição a potências estrangeiras, e o dos militantes, seres morais perfeitos que não cedem à tortura e cujas vidas são completamente dedicadas ao Partido. A cena a seguir narra o momento em que João, que organiza a greve dos carregadores de navios no cais de Santos, recebe a mensagem de sua esposa dizendo ter perdido o bebê:

"Menina boa e valente", pensava João enquanto entregava ao chofer o bilhete para Zé Pedro. Ela sabia colocar o trabalho do Partido sobre seus interesses pessoais. João podia imaginar o quanto Mariana necessitava dele nesse momento pela medida da necessidade que ele mesmo sentia de estar junto dela, de buscar no seu amor o conforto para suportar a dolorosa notícia. Se estivessem juntos, seria sem dúvida bem mais fácil e, no primeiro momento ele só pensava em voltar, em ir acarinhar a cabeça bem-amada da esposa, a lhe confortar e a se confortar no seu afeto. Foram as linhas escritas por Mariana que o fizeram compreender que o trabalho a fazer em Santos não estava terminado, não era chegado ainda o momento de partir. Por mais que lhe fosse doloroso ficar ali sozinho com aquela notícia, com a perda daquela criança tão ansiosamente esperada. (Amado, Os ásperos tempos 162)

E, a seguir, está Mariana, a esposa de João, falando com o médico sobre o Ruivo, que está gravemente doente dos pulmões:

  • Quando o dr. Sabino chegou lhe perguntou:

  • - Então, o homem volta para o sanatório? Ela balançou a cabeça negativamente:

  • - Não creio. E não creio tampouco que ninguém tenha o direto de obrigá-lo a voltar.

  • Estamos atravessando um momento difícil e não é hora de pensar em saúde, em lar, em si próprio. É a hora dos comunistas mostrarem que são comunistas. O médico alçou as mãos, impotente:

  • - Ele vai morrer...

  • - O importante é que o Partido viva. (Amado, A luz no túnel 86)

Três observações valem a pena registrar neste ponto. A primeira diz respeito ao apagamento do indivíduo em todas as primeiras ficções de Amado e, consequentemente, da tensão com as versões do todo, seja do ponto de vista do conteúdo, do mundo representado nas histórias, seja do ponto de vista da forma, da constituição verbal dos artefatos. O Povo e o Partido são obviamente entidades coletivas, mas mesmo o Heroi não pode ser considerado uma pessoa no seu senso comum, pois, como já observamos, ele foi tão favorecido pela natureza que o sentido de finitude que define o sujeito parece ser anulado. Em segundo lugar, a ausência de subjetividade e o exagero da transcendência afetam também a natureza do mal que, apesar de todos os danos e dores infligidos, é de fato fraco, nunca realmente ameaçador. A maldade nunca flerta com a falta de propósito, também nunca contém um componente idiossincrático, mas apenas cumpre uma posição narrativa necessária.

O último comentário é mais longo e se refere à relação que esses primeiros romances estabelecem entre a opressão de classe e a totalidade social. É possível dizer, de modo sucinto, que, neles, a resistência ao capitalismo não surge das próprias contradições deste, mas em um reino externo a ele, de pura vitalidade popular que permanece intocada pela lógica capitalista. Nesse sentido, é produtivo comparar o realismo socialista de Jorge Amado com os romances de Graciliano Ramos, também comunista. Vidas Secas (2019) [1938], por exemplo, ao mostrar sem piedade as condições de exploração no interior do Nordeste brasileiro enquanto uma família sem-terra tenta escapar de uma forte seca que ameaça sua vida, insere em si todos os componentes da denúncia social: propriedade privada de terras vazias e desocupadas que obrigam as pessoas à fome, privação extrema, violência policial, exploração do trabalho; em uma palavra, o interior árido do Brasil aparece como espaço desumanizador de uma sociedade bestial. Narrativamente, isso é estruturado por meio de um emprego magistral do discurso indireto livre à medida que acessamos a realidade apenas através dos olhos dos personagens, incluindo a cachorra da família, Baleia. Embora a técnica seja a mesma, o uso do indireto livre por Graciliano Ramos deixa ver que a dominação social penetra todos os poros da sociedade: o mundo bestializado animaliza os oprimidos, que passam a assumir um papel importante na máquina social que os domina. Em Amado, por sua vez, a cultura popular está apartada da economia e, nessa configuração específica, cumpre duas funções: 1) é fonte de prazer e exuberância, último reduto da felicidade e 2) é o veículo através do qual os personagens se percebem como expressões de coletividades e compartilham, apesar das diferenças e das dificuldades económicas, um senso de comunidade. Esse universo narrativo existe, portanto, por meio da combinação paradoxal de riqueza cultural com miséria económica. O realismo no nível descritivo não penetra a exuberância da cultura, nem atinge, como vimos, a retidão moral dos personagens e seus laços com sua comunidade. Um personagem de Brecht diz "Primeiro a fome, depois a moral"; na ficção amadiana, no entanto, o sentido moral dos personagens e a sua pertença ao coletivo (mesmo em uma comunidade de ladrões como em Capitães da Areia) são dados antecipadamente e persistem apesar de todas as dificuldades concretas e carências materiais tão fortemente representadas nos primeiros romances de Amado, nos quais a autopreservação está presente como tema, mas não como desencadeadora de conflitos.

Essa dinâmica é precisamente o que separa o marxismo ocidental, nas célebres palavras de Perry Anderson, do comunismo de estilo soviético. Para a Escola de Frankfurt em particular, compreender como o proletariado poderia atuar como um agente tão forte de sua própria submissão era a tarefa mais importante, o que justificou a incorporação intensa da psicanálise em uma estrutura marxista renovada. Os efeitos da universalização capitalista da forma mercadoria - os quais, no Brasil, ocorreram por meio da modernização desenfreada registrada por Jorge Amado- permeiam toda a sociedade, incluindo o psiquismo do indivíduo. O caráter não problemático do prazer popular, que como forma de conteúdo era libertador, acabou por produzir, como elemento formal, efeitos paralisantes. O resultado dessa combinação de conteúdo progressivo com forma regressiva é a constituição de um motor narrativo que falsifica o realismo, pois, ao mesmo tempo em que aparenta representar o mundo concreto, o submete a um principio organizador irreal. Não importa quão verdadeira seja a descrição dos costumes do povo, quão clara seja a representação da violência, a máquina narrativa amadiana é aquela que põe em movimento uma mitologia diversificada e expandida. Por isso, embora seja comum na crítica a distinção entre os romances de Amado a partir do espaço nos quais se passam (romance rural e romance urbano), nosso argumento é que tal diferenciação não importa, pois o característico de uma mitologia é a sua capacidade de produzir discurso, submetendo todos os conteúdos disponíveis a princípios geradores comuns.

O motor dessa mitologia é o Sonho do socialismo. A narrativa sobre Prestes em O Cavaleiro da Esperança pode soar risível e ingênua hoje, como pode parecer absurda e opressiva a maneira como o Partido paira supremamente acima da vida privada dos militantes em Os Subterrâneos da Liberdade. Mas essas impressões, por mais verdadeiras que sejam, não podem ser dissociadas de nossa situação, marcada pela ausência absoluta de qualquer coisa comparável a um horizonte utópico como ese.21 Em Gabriela, Cravo e Canela é justamente este horizonte que não pode mais ser sustentado. A ausência do Sonho como instância narrativa reguladora permite o surgimento de um novo narrador amadiano, que lida com o discurso indireto livre de uma forma mais rica e matizada. Como os personagens não precisam ocupar posições pré-estabelecidas ditadas pelo horizonte utópico, eles agora podem se manter por conta própria, dotando a história de um novo sentido de pluralidade. O proprietário Manuel das Onças, o padre Basílio, a rica Malvina, o dono do bar Nacib, a cozinheira Gabriela, o professor Josué, o político Ramiro Bastos, o empresário Mundinho Falcão; estes são apenas alguns exemplos de personagens que se colocam como pólos autónomos de reflexão e de argumentação, delineando pontos de conflitos individuais, mas também múltiplos. À medida que se alternam, os pontos de vista são relativizados e, à medida que o narrador transita de um para o outro, ele organiza as ações dos personagens, mas não mais as comenta ou toma partido. Se, nos romances anteriores, uma preocupação política regulava todo o aparato narrativo, agora a crítica social fica subordinada a um princípio de ironia. A ambiguidade constitutiva reside na posição do narrador vis-à-vis com o mundo descrito. Por um lado, ao penetrar na mente dos personagens, o narrador fixa posições sociais específicas, permitindo a crítica social: Nacib é o típico pequeno burguês, dono de um bar que se torna um restaurante conhecido, Mundinho é o arquetípico membro da alta de classe, Gabriela é uma emanação do povo, etc. Por outro lado, porém, a pluralidade de pontos de vista impede uma convulsão social, restringindo o alcance de uma possível revolução a uma lógica de modernização tanto da economia quanto dos costumes. Essa tensão se transforma gradativamente em um elogio crescente à tipicidade brasileira. Assim, o caminho se abre para o desenvolvimento posterior de Amado: uma exploração da cultura brasileira de uma forma que certamente reconhece a desigualdade social, mas ao mesmo tempo valida o mundo como algo que não pode ser totalmente mudado; a sensualidade transbordante compensa a falta de dinheiro. Com isso, Jorge Amado acaba inserindo-se em uma longa tradição nacional que confere à natureza um valor transcendente, metafísico. A novidade é que a noção de natureza se expande para o âmbito do povo e da cultura popular. Daí a conclusão de que a transição do realismo socialista para a mística da brasilidade é apenas um rearranjo da mitologia amadiana.

Obras citadas

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1Como, por exemplo, A mãe (1906), de Maxin Górki e Tchapáiev (1923), de Dmitri Furmanov. O ano de publicação dos romances revela como as obras modelares do realismo socialista foram escritas antes do realismo socialista ser elaborado como método e instituído como política de Estado.

2A aproximação do realismo socialista com o romantismo revolucionário é fruto de estudos mais recentes, em especial os desenvolvidos por Clark.

3Jorge Amado, a quem retornaremos a seguir, em entrevista a Alice Raillard (55-56), menciona a importância da Editora Pax para a recepção do realismo socialista no Brasil e para a formação de seu repertório de leitura. A editora começava a traduzir e a publicar algumas obras de esquerda; como Passageiros de terceira classe, de Kurt Klaber; — e os romances russos da primeira fase da literatura soviética, como A Derrota, de Alexander Alexandrovich Fadeyev, A Torrente de Ferro, de Alexandr Serafimovitch, e A Cavalaria Vermelha, de Isaac Babel —.

4Damrosch (18) assinala também as contradições advindas do novo mundo no qual a literatura-mundo agora se insere: "Escrever para publicação no exterior pode ser um ato heróico de resistência contra a censura e uma afirmação de valores globais contra o paroquialismo local; mas também pode ser uma etapa posterior no processo de nivelamento de um consumismo global em expansão". Aqui, o autor alerta para a necessária distinção entre a literatura-mundo e aquilo que pode ser apenas uma das faces da mercantilização da arte.

5Uma observação, porém, é inevitável, a saber, que a autonomia nunca pode ser concebida imediatamente, como se estivesse simplesmente disponível; ao contrário, esta é o resultado de um processo de constituição e de luta contra a heteronomia. As restrições desempenham assim um papel dialético tanto como impedimentos quanto como forças possibilitadoras. Para dois exemplos nessa vertente, conferir Durão e Brown.

6Para uma discussão esclarecedora sobre as dificuldades de se importar novos géneros para o Brasil, o romance como forma, ver Schwarz.

7Para a relação entre comunismo e literatura entre os anos de 1930 e 1950, conferir Palamartchuk e Vieira; para uma interessante discussão sobre as relações Sul-Sul de escritores progressistas, cf. Majumder.

8É interessante recuperar aqui o conceito conflitante de cultura, bastante distante do sentido atual que a associa ao consumo. A esfera cultural era um campo de batalha e os comunistas tiveram que enfrentar uma oposição feroz, tanto nacional como internacionalmente. Como Franco (23) nos lembra, os Estados Unidos criou, durante a Guerra Fria, vários órgãos de difusão cultural anticomunista na América Latina. A divisão de imprensa do Escritório de Assuntos Hemisféricos, coordenada por Nelson Rockefeller, por exemplo, saturou a América Latina com notícias, reportagens e revistas mensais. Também patrocinou programas de rádio locais e subsidiou departamentos de difusão de cultura em massa. Fingindo ser uma das muitas práticas da Política da Boa Vizinhança, esta foi, de fato, "uma forma aparentemente benevolente de imperialismo".

9O País do Carnaval (1931), Cacau (1933), Suor (1934), Jubiabá (1935), Mar morto (1936), Capitães da areia (1937), Terras do Sem-Fim (1943), São Jorge dos Ilhéus (1944), Seara vermelha (1946), Os subterrâneos da liberdade (1954), Gabriela, cravo e canela (1958), A morte e a morte de Quincas Berro d'Água (1959), Os velhos marinheiros ou o capitão de longo curso (1961), Os pastores da noite (1964), O Compadre de Ogum (1964), Dona Flor e Seus Dois Maridos (1966), Tenda dos milagres (1969), Teresa Batista cansada de guerra (1972), Tieta do Agreste (1977), Farda, fardão, camisola de dormir (1979), Tocaia grande (1984), O sumiço da santa (1988) e A descoberta da América pelos turcos (1994).

10A estrada do mar (1938).

11Do recente milagre dos pássaros (1979).

12Hora da Guerra (2008). Escrito entre 1942 e 1944, trata-se de uma publicação póstuma.

13O menino grapiúna (1981) e Navegação de cabotagem (1992).

14Bahia de Todos os Santos (1945). Trata-se de um caso fascinante sobre o qual, infelizmente, não teremos espaço para lidar aqui. Publicado em 1945 a partir de Gilberto Freyre, que introduziu o guia de viagens no Brasil (Aguiar 194), Bahia de Todos os Santos (2012) representou uma das primeiras publicações desse novo género. Nele, Amado fez questão de descrever não só as belezas de Salvador, mas também seu lado miserável e repulsivo. Sucessivamente revisada até sua forma final em 1986, a obra foi perdendo gradativamente seu fio crítico em favor de um gosto pela tipicidade, refletindo em si mesmo o próprio desenvolvimento literário mais amplo de Amado.

15O amor do soldado (1947).

16O mundo da paz, viagens (1951).

17O milagre dos pássaros (1997). A pesar de escrito em 1979, o livro teve a sua primeira edição comercial apenas em 1997.

18O gato Malhado e a andorinha Sinhá (1976) e A bola e o goleiro (1984).

19ABC de Castro Alves (1941) e O cavaleiro da esperança (1942).

20Um homem de verdade (Bóris Polévoi), Assim foi temperado o aço (Nikolai Ostrowski), O grande norte (Tikhon Siomúchkin), Tchapáiv (Dmitri Furmanov), A colheita (Galina Nikolaieva) A tempestade Vol.i e 2 (Ilya Ehrenburg), A felicidade (Piotr Pavlenko) Primeiras alegrias (Konstantin Fédin), A torrente de ferro (Alexandre Serafimovitch), Terra e sangue (Mikhail Cholokov) e A estrada de Volokolanks (Alexandr Bek).

21No prefácio à vigésima edição de O Cavaleiro da Esperança, Amado responde à classificação de ingenuidade que um amigo atribuiu ao livro nos seguintes termos: "A ingênua condição destas páginas, escritas quando Hitler ameaçava dominar o mundo e a ditadura do Estado Novo parecia inabalável, nasce da minha crença obstinada no futuro" (Amado 4)

Cómo citar este artículo (MLA): Durão Akcelrud, Fabio y Camila Peruchi. "Sobre o realismo socialista brasileiro de Jorge Amado". Literatura: teoría, historia, crítica, vol. 24, núm. 1, 2022, págs. 187-208.

Sobre o autores

Fabio Akcelrud Durão é professor Livre-Docente do Departamento de Teoria Literária da Universidade Estadual de Campinas. Formou-se e em Português/Inglês pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, e obteve o mestrado em Teoria Literária pela Unicamp. Seu doutorado foi feito na Duke University. É autor de Metodologia de pesquisa em literatura (Parábola, 2020), O que é crítica literária? (Parábola, Nankin, 2016), Fragmentos Reunidos (Nankin, 2015), Modernism and Coherence (Peter Lang, 2008) e Teoria (literária) americana (Autores Associados, 2011). Publicou diversos artigos em periódicos como Critique, Cultural Critique, Luso-Brazilian Review, Parallax, The Brooklyn Rail e Wasafiri.

Camila Hespanhol Peruchi é doutoranda do Programa de Teoria e História Literária da Universidade Estadual de Campinas, mestre em Estudos Literários pela Universidade Estadual de Maringá e graduada em Letras - Língua Inglesa e Língua Portuguesa pela Universidade Estadual de Maringá. É bolsista da Associação Brasileira de Estudos Irlandeses (Irish Government Emigrant Support Programm), membro da Associação Brasileira de Estudos Irlandeses e do grupo de pesquisa Joyce Studies in Brazil. Dentre suas publicações estão os artigos "O teatro atualiza a história: mediações entre o materialismo histórico de Benjamin e a peça Auto dos bons tratos, da Cia do Latão" (Acta Scientiarum, 2015), "Apropriação e transgressão nos modos de representação da consciência em Ulysses" (Qorpus/Dossiê James Joyce, 2019) e "A periferia contra-ataca" (Remate de Males, 2020).

Recebido: 09 de Fevereiro de 2021; Aceito: 08 de Setembro de 2021; Publicado: 01 de Janeiro de 2022

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